Há momentos em que se torna impossível não forçar um retorno ao passado, breve ou distante, para encontrar uma forma, excepcional que seja, de colocar as coisas nos seus devidos lugares. Cada vez mais vamos acreditando, no mais profundo da nossa consciência, de que, as sucessivas demonstrações de zelo excessivo, de ultrapassagem dos limites legais, da pretensão de impôr uma razão muito própria, que não é a razão do curso natural e humano da Justiça, não correspondem, de forma alguma, ao que comum e infelizmente, se popularizou denominar de "ordens superiores".

Com efeito, todo o trajecto até agora percorrido, no decorrer do julgamento dos 17 cidadãos acusados de vários crimes contra a segurança do Estado em Angola, vem demonstrando que, por várias e repetidas vezes, mesmo admitindo o atrás referido zelo excessivo, se pretende prejudicar, demonstrando o aparentemente inverso, o nome do Presidente da República.

Se é verdade que desde o início do processo, o Chefe de Estado parece demonstrar o distanciamento próprio e indispensável de quem tem de dar o exemplo, a "porca torce o rabo" quando, em nome das já tristemente célebres "ordens superiores": São "montadas" manifestações, a pressionar tudo e toda a gente, pedindo que não haja pressões!... É ordenada a retirada da sala de audiências de diplomatas estrangeiros que constituiriam a melhor forma de provar a total independência do Tribunal e a sua cega obediência à Lei; Somos todos, público em geral, jornalistas, familiares dos detidos, recebidos, ainda fora do Tribunal, com agressividade e severidade por parte das forças da ordem, que em lugar de demonstrarem urbanidade e, pelo menos, respeito por todos (mesmo pelos acusados, que, ao que se saiba, não foram ainda condenados) tratam-nos como criminosos que não somos. Não foi um acaso a referência inicial a um passado, recente ou longínquo, a propósito do papel imprescindível dos Tribunais em Angola.

Se há domínio em que Angola, por razões até de ordem histórica, acabou por ter uma tradição incomum, é exactamente o do exercício do Direito. Seja para o caso do exercício da advocacia, seja para a magistratura, temos exemplos históricos de cidadãos nacionais que, primeiro enquanto advogados, desde os anos 40 do século passado e mais tarde, em particular a partir de finais de 1977, enquanto juízes, se tornaram exemplos intocáveis. Primeiro, em nome da defesa de causas nas quais acreditavam, enquanto advogados.

Depois, e já como juízes do então Tribunal da Relação, até finais de 1991, quando foi criado o Tribunal Supremo, deram provas de uma feroz independência, mesmo em tempos de partido único, recusando, liminarmente, pressões de qualquer espécie. Porque a memória é curta para alguns, ou porque a maior parte das pessoas o desconhece, este grupo de juízes, recusou sempre, corajosa e abertamente, qualquer espécie de tentativa de promiscuidade entre a justiça e a política, mesmo sendo adeptos da causa da Independência Nacional, acima de qualquer suspeita.

Vário(a)s dele(a)s foram homenageados por isso. A começar pelo seu grande conhecimento da própria legislação então em vigor, tentando até ao limite das suas forças, reduzir as penas dos vários réus de, pelo menos, quatro processos políticos, entre os anos 40 e finais de 60. Depois, pela verticalidade e rigor com que julgavam as causas que chegavam às suas mãos.

Era exactamente por isso que tinham lutado. Por um Estado de direito, onde o primado da Lei estivesse acima de tudo. E acima de todos. Quem os conhece(u) nunca os ouviu levantar a voz. Nunca os viu tratar mal um réu (ainda que sendo considerado culpado). Habituou- se a conhecê-los, dignos e livres, únicos verdadeiros donos da sua própria consciência. Não consta que alguma vez tenham tentado esconder os rostos.

Apresentaram toda a vida e em qualquer circunstância, a cara levantada, nunca escondendo a face. Sendo assim, somos obrigados a conjecturar, se os comportamentos agora em voga, não acabam por prejudicar, de forma clara e aberta, as próprias instituições judiciais e policiais, que deviam, neste momento, demonstrar, mais do que nunca, calma, tranquilidade e maturidade.

Afinal, todos temos de provar, todos os dias, que, independentemente das perspectivas políticas que possam separar, como é natural, os diferentes projectos partidários, estamos interessados, empenhados e convocados, a solidificar um Estado de direito, democrático e livre.

A insistência, teimosa e prejudicial, no recurso a várias práticas que criam um antagonismo perverso, entre a chamada sociedade civil e as autoridades, dão azo, em última instância, a que, o mais alto magistrado da Nação seja, permanente e erradamente responsabilizado por acções que não têm nada a ver com o seu papel e a sua função.