No historial de picardias e crispação parlamentares, os fantasmas foram responsáveis pelas estratégias do "bota-abaixo" que ditam o voto negativo da oposição a projectos que lhes pareçam impregnados do mal do eleitoralismo.
A sociedade alimentava expectativas de que a Lei das CM representasse um aprofundar da democracia participativa, mas a oposição não quis sequer reflectir melhor.

"Barricou-se" no discurso do retorno às brigadas populares de vigilância e na comparação com as autarquias, e não conseguiu olhar para nada mais, além dos fantasmas. Revelou-se com um certo amadorismo político e incapacidade de ler correctamente as percepções da sociedade.

Foi uma oportunidade perdida de debate sobre um novo modelo de gestão que pode promover uma maior horizontalização das relações de poder, algo que os deputados deveriam defender como essencial para o amadurecimento da nossa democracia.

Como nos próximos dois/três anos não deveremos ter eleições autárquicas, todo o "choro" da oposição por elas, mesmo que legítimo, é extemporâneo, sobretudo quando implica uma desvalorização política de outra forma de participação no poder local e que, neste momento, é algo mais real, objectivo e num formato igualmente constitucional.

Os partidos políticos deveriam ter aproveitado, por isso, esta lei para aprofundar e assegurar outras formas de participação dos cidadãos no processo democrático.

Ao "enclausurarem-se" nas lutas politiqueiras, não conseguiram enxergar a possibilidade de oferecer aos cidadãos mais desenvolvimento local, através de uma participação mais ampla na gestão dos seus problemas, sobretudo numa altura de crise em que o Governo não cessa de lhes solicitar que contribuam nas despesas financeiras da água, luz, lixo, saúde e educação.

Perdeu-se, em bom rigor, uma oportunidade de consagrar na lei o direito dos cidadãos de co-decidirem sobre a gestão das suas novas contribuições financeiras.

Se se solicitam aos cidadãos contribuições adicionais, é justo que se consagrem também, com a participação destes, formas mais directas e inframunicipais de supervisão e controlo dos resultados, uso e beneficiários do seu dinheiro.

As CM transformaram-se, com esta lei, nos principais órgãos de democracia directa da nossa sociedade e a partir delas deveriam ser estudadas as tais novas perspectivas de fiscalização e controlo, sobretudo as taxas, que incidem sobre um serviço específico a ser prestado.

Por outro lado, temos assistido, cada vez mais, a uma dissociação entre os nomeados para administração local (que não são representantes dos munícipes mas de quem os nomeia) e os anseios dos cidadãos.

Enquanto não se realizarem eleições autárquicas, os cidadãos eleitos ganham com as CM o direito de escrutinar de perto os nomeados pela democracia representativa, através do aumento do peso da sua influência na estrutura da Administração Local, não só em matéria de direito de opinião mas também ao nível da participação efectiva na gestão da vida em comunidade.

Deveriam, por exemplo, ter aproveitado para alterar o figurino dos Conselhos de Auscultação e Concertação social, (CACS), sobretudo agora que se vão designar de Conselhos de Auscultação da Comunidade.

Como órgãos de representação comunitária, e havendo representantes eleitos pelos cidadãos, não deveria ser aceitável manter nos CACS pessoas cuja legitimidade não venha directamente de um voto do povo.

Os lugares dos CACS municipais e provincial devem ser ocupados pelos eleitos pelas CM, como órgãos democráticos de representação directa. A lei deveria ter estabelecido os termos dessa participação e também a alteração para carácter vinculativo sempre que uma decisão obtenha um apoio de três terços do número das comissões de moradores de uma região.

Indo mais longe, seria óptimo ver os deputados debaterem a possibilidade de se inaugurar, com esta lei, um novo tipo de relações entre o Governo e a Sociedade e entre a Administração Local e a população, capazes, inclusive, de abrir um debate nacional sobre a utilidade da manutenção no nosso ordenamento administrativo das Administrações Comunais (AC). Ou ainda sobre a sua continuidade apenas nas áreas rurais, onde as comissões de moradores possam, porventura, ter menos hipóteses de afirmação.

Como se sabe, as AC não são unidades orçamentais e, na prática, não possuem funções operacionais. As CM, porque eleitas e geradas a partir da vivência dos moradores, são modelos muito mais eficazes de controlo e participação no poder do que alguma vez as administrações comunais possam ter sido.

A nossa oposição, ciosa do seu jogo político, não percebeu que a Lei das Comissões de Moradores deveria ter sido o ponto de partida da discussão técnica e sem complexos para uma reforma democrática do poder local, ainda sem autarquias, é verdade, mas condicionando-as no substrato municipal que a CRA aponta como tendência.