O alcance da paz em 2002 é, certamente, o ponto mais positivo, apesar de não ter iniciado o fim de um ciclo geracional, que o país há muito pede. Do balanço constará também a grandiosa mas fugaz euforia económica e a crise profunda que se lhe seguiu, expondo fragilidades estruturais, problemas de gestão governativa e financeira e racionalização e optimização do dinheiro público.

Anunciado o processo de transição, a imagem que JES nos deixará para o futuro ficará colada ao sucesso ou ao insucesso dessa operação de substituição do líder. Mesmo tendo em conta o previsível crescimento eleitoral da oposição, o próximo PR ainda deve vir do MPLA, o que o obriga, por um lado, a encontrar quem possa manter uma certa continuidade mas, por outro, quem tenha índices de aceitação popular, poder interno e respeito da sociedade que lhe possibilitem liderar as reformas que a sociedade exige.

O pior dos cenários é, uma vez mais, JES dar o dito por não dito e apresentar-se às eleições. Será igualmente um desastre, uma eventual solução "monárquica" no seio da sua família e pelo mesmo caminho seguirá a escolha de uma "marioneta", alguém que não tenha condições políticas e credibilidade técnica para "recomeçar do zero".

O número de contestatários da actual liderança dentro do eleitorado tradicional do MPLA aumentou significativamente e deles depende a estabilidade política. Se a oposição tiver competência para atrair esses desiludidos poderemos ter um parlamento menos subalternizado, mais equilibrado e mais interventivo. Se isso não acontecer, subirá o desinteresse pelo voto e com ele a abstenção.

Em qualquer dos casos, há muita gente a atingir o limite da paciência. O descontentamento continuará a subir a menos que se criem as condições de desanuviamento político. Em linguagem vernácula diríamos é preciso "não esticar mais a corda".

A tomada de decisões pouco sensatas, e que acirrem as divisões na sociedade, pode criar grandes ondas de descontentamento e isso pode prejudicar todo o clima de paz social. Como noutros países, vemos subir o tom da indignação, através de sentimentos como a xenofobia, o racismo e a caça-às-bruxas. Decisões que levantam dúvidas quanto à actuação da Justiça.

A condução da coisa pública ou outras que sejam susceptíveis de dividir os angolanos criam, genericamente, um estado de opinião muito desfavorável à confiança nas instituições do Estado e isso, por sua vez, fomenta a falsa ideia de que a agitação social nas ruas, a justiça por mãos próprias e o crime como "vingança económica" podem resolver os problemas.

O desalento com a falta de soluções básicas, com a impunidade das elites ou ainda com a falta de responsabilização pelo desabamento económico são "avisos" sociais a ter em conta e convém que não se leve as pessoas ao desespero.

Agrava a situação o enfraquecimento das instituições do Estado provocados por práticas que agridem preceitos morais e sociais como o suborno (a gasosa), nepotismo, tráfico de influências e outras condutas que desviam benefícios públicos para favorecimentos privados.

Acresce também a erosão moral de uma elite política informal importante a que vulgarmente chamamos de "Mais Velhos", uma espécie de "senadores" da política, aos quais recorríamos para pedir conselhos, mediar conflitos latentes e apaziguar tensões. Ao embarcarem também eles no culto da personalidade e na cumplicidade, esses "senadores" esvaziaram a sua própria autoridade social assim como o seu estatuto de figuras emblemáticas da defesa dos interesses nacionais.

Depois de Mendes de Carvalho desapareceram os "senadores" quer o fossem pela idade ou, sendo mais novos, pela conduta pessoal de diálogo e pela moralidade. O vazio é enorme. É uma queda sem pára-quedas.

A transição deve ter como preocupação primária a estabilidade, que nada tem a ver com os cenários fatalistas de instabilidade criados para atrasar a sucessão, mas uma estabilidade sustentável, resultante do bom funcionamento das instituições democráticas, do respeito pelas regras transparentes e de boa governação bem como a visão de um país igual para todos.

Só decisões ponderadas, razoáveis, que não insultem este povo heróico e generoso, podem devolver-nos uma certa "normalidade" e paz de espírito até que o voto transparente e democrático seja a expressão da vontade do povo. Os excessos, sejam de que tipo forem, podem transformar em rastilhos perigosos para o modo como JES será visto no futuro e para nós, angolanos, que só queremos um país republicano, em paz e igual para todos.