O Estado, ao invés de trabalhar para a simplificação da vida do cidadão, continua a funcionar em "quintas e guetos de demarcação de poder"; cada departamento procura demonstrar mais competência que o outro, melhor projecto e mais visibilidade tendo, por vezes, o mesmo destinatário, a mesma área de intervenção ou até os mesmos resultados. Um cartão do cidadão eliminaria, por exemplo, a quase totalidade dos mil e um cartões que possuímos e pouparia uma infinidade de dinheiro, tempo e eficácia ao Estado e a cada um dos utentes. Como em outros tantos assuntos, há anos que todos concordam na necessidade de um cartão do género, mas disso não saímos.

É, pois, natural, que muitos dos projectos nacionais deixem transparecer essa lógica das "quintas ministeriais e provinciais", que impedem uma melhor rentabilização de recursos e de meios e um atendimento ao cidadão mais eficiente. Várias iniciativas provinciais deveriam, na verdade, ser regionais, tal como várias iniciativas ministeriais, em vez de uma actuação isolada, requerem uma acção integrada de todo o governo, na base da complementaridade e da busca das melhores soluções.

Existem projectos e actividades que, de tão transversais, deveriam abarcar vários sectores e uma actuação integrada e multifacetada do governo. Apesar de alguns casos de sucesso, sobrepõem-se no programa de governo projectos que poderiam ser agrupados num único, em vez da sua dispersão, como se cada departamento ministerial tivessem o seu próprio Estado e os seus próprios cidadãos para atender. Não se pode dizer ao certo que falta articulação, visto que, para além de alguns bons exemplos de coordenação multissectorial, existe o conselho de ministros como órgão de consulta e ainda as comissões de coordenação da politica social, económica e economia real. A verdade é que, apesar de todas elas, muitas das acções do governo, sobretudo na esfera operacional, deixam transparecer um acentuado nível de desarticulação, de falta de diálogo institucional e até de ausência de mecanismos de facilitação de processos e práticas de implementação de projectos.

O caso mais visível dos nossos dias é o do pagamento do Imposto Predial Urbano. A Administração Geral Tributária (AGT) apela ao pagamento do imposto de "forma voluntária" e informa que a legalização do imóvel não é condicionante desse pagamento. A AGT quer apenas saber do seu dinheiro, não querendo, nem por sombras, saber das responsabilidades do "outro" Estado (a que a AGT não pertence) para com o cidadãos. E assim gastam-se rios de tinta e de dinheiro numa campanha publicitária para explicar ao cidadão angolano que uma coisa é o Estado da AGT, que cobra e quer o IPU pago, e outra coisa é o outro Estado que deveria facilitar os processos de legalização da propriedade, registo de matrizes prediais ou conceder juridicamente aos cidadãos os seus direitos de propriedade.

O IPU é descrito como uma contribuição monetária que cada um deve pagar ao Estado por posse, detenção e usufruto de um imóvel. Ora, a maior parte dos cidadãos não tem por culpa do Estado as suas posses e os prédios urbanos devidamente comprovadas por lei. A administração pública do Estado não possui serviços expeditos, competências técnicas nem capacidade humana para atender à demanda dos muitos dos proprietários "informais" que construíram, compraram ou herdaram imóveis de que não conseguem comprovar a titularidade. Se para o Estado-AGT basta a presunção de propriedade, para o restante Estado (o dos tribunais, das conservatórias do registo predial, dos bancos comerciais, das heranças) isso é matéria tão sensível que necessita de estar devidamente registada e legalizada. Em resultado disso, a maioria dos edifícios, casas ou condomínios erguidos nas grandes cidades são juridicamente inexistentes e não está registada em nenhuma conservatória do registo predial. Toda a crise do mercado imobiliário está directamente ligada à fragilidade das relações entre os diversos agentes do sector imobiliário. Os bancos, cujo negócio é fazer circular o dinheiro, levantam múltiplos obstáculos para compensar a falta de garantias e de capacidade de endividamento dos seus clientes e os utentes que, não tendo garantias para oferecer, aceitam ser tratados com menoridade, humilhados e insultados com injustas condições de negociação por necessidade de dinheiro para os seus projectos.

Um prejuízo particular para a nossa economia, já de si pouco atractiva para investidores estratégicos que disponham de capital, é a fragilidade e o peso residual do crédito hipotecário nas operações de financiamento da economia, tudo porque o Estado não consegue que um extenso património imobiliário esteja devidamente documentado e titulado. No entanto, o mesmo Estado, visto na perspectiva da AGT, declara publicamente que essa normalização jurídica do património imobiliário nem sequer é necessária, desde que as pessoas paguem o IPU. É um absurdo que a AGT procura resolver com o absurdo ainda maior, que é convencer as pessoas de que a presunção de propriedade é suficiente para que determine a posse no pagamento de impostos.

(A crónica de Ismael Mateus, "Democracia e Cidadania", pode ser lida integralmente na edição semanal nº 464 do Novo Jornal, nas bancas, ou em digital, que pode pagar via Multicaixa)