"Foi um sonho lindo que acabou, houve aqui alguém que se enganou..." José Mário Branco
Sendo importante limpar algumas teias de aranha, ir ao fundo de alguns baús e rememorizar, coisa que ainda não se tornou corriqueira entre nós e uma das muitas razões que podem explicar quão distante está o discurso oficial da realidade.
Tornou-se prática comum no nosso país os dirigentes (grande parte dos dirigentes político-partidários) afirmarem, com uma pose que até parece de Estado e com um ar recheado de pompa e circunstância, exactamente o oposto daquilo que é o nosso quotidiano. A nua, crua, verdadeira e violenta vida real.
E em simultâneo, como acontece sempre nestes casos em que facilmente se arranjam coros gigantescos que custam dez reis de mel coado, têm logo uma legião de mentes vazias, lucidez rasa e verbo nenhum a incentivá-los, a desdobrarem-se em elogios, a distorcerem, a mentirem.
Naturalmente dava-lhes jeito que todos entrassem nesse coro desaustinado, ridículo e ignorante. Que conseguirá, eventualmente convencer a turba menos avisada, mais inculta, empurrada para o desnorte e para o abismo da ignorância pelas seitas e igrejas que por aqui pululam a vigarizar os incautos. Mas que não convence, como é evidente, quem faz da lucidez, da observação e da inteligência, armas imprescindíveis para suportar o dia-a-dia.
É preciso, pois, que fique claro que não são os que reagem ao ridículo de uma propaganda malfeita, desastrada, que não corresponde em absoluto a qualquer pedaço, ínfimo que seja, de verdade, que são os incómodos nesta estória toda.
Não são os que defendem um profundo debate sobre os caminhos que estamos a seguir, e não o que dizem que estamos a seguir, que são responsáveis por querer que algumas máscaras caiam. Nem culpados do medo que nasce de que um conjunto de estórias muito pouco edificantes não desapareça em simultâneo com a lógica e a razão que ganham fundamento pela via da seriedade, da coerência e de alguma conexão entre a teoria e a prática.
Aqui fica, em nome da memória, um extracto de uma carta de um intelectual em Luanda, por volta dos anos 50, e que poderia, sem mudar uma vírgula sequer, ser escrita e assinada hoje, no ano de 2017:
"[...] Mais do que os actos e atitudes em si mesmos considerados, interessa-me a intenção e o significado que os anima. Mas isto... são talvez caturrices de quem, por deficiência fisiológica ou incapacidade psicológica, não sabe ou não quer, por birra, adaptar-se aos novos tempos e às novas fórmulas. Tudo evolui. Tudo muda. Só uns tipos serrazinas, biliosos, inconformistas, como este pobre amigo que lhe escreve, teimam, apesar de tudo, em resistir às correntes modernas de actualização do carácter e da dignidade. Só esses -um bando de abencerragens - persistem em ter vontade própria e seguir o seu caminho... Só nós - os inadaptados, os involuídos - mantemos ainda a velha e ingénua tradição de lutar cara a cara, de coração ao alto e viseira levantada, e temos o arrojo papalvo e sediço de proclamar o orgulho da nossa independência e da nossa autenticidade. Que quer? Reconhecemos a insensatez mas agora é já lamentavelmente tarde para recomeçar. Falta-nos a plasticidade dos amorfos e dos colóides Falta-nos, sobretudo, o sentido vivo das oportunidades...".
Sessenta anos depois, assinaríamos estas palavras como se fossem hoje. Ou seja, ainda que os destinatários sejam forçosamente outros, a realidade é tragicamente a mesma. Os tempos passaram, a realidade alterou-se, até por vezes de forma dramática, mas, no essencial, pouco evoluímos.
No essencial, na esmagadora maioria das circunstâncias, grande parte dos seres humanos esquece com facilidade a sua própria trajectória, até as próprias razões que estiveram na origem das escolhas da sua vida e dos seus caminhos. Basta terem poder. Basta ter logo depois um poder excessivo. Está suficientemente claro ou é preciso que façamos um desenho?