O Novo Jornal Online quis ouvir Lopito Feijó antes do lançamento do livro e rumou à sua "casa sonhada", que tem vindo a ser transformada numa casa-museu. Um espaço onde figura já uma larga colecção de objectos de identidade e representatividade dessa África que tanto o seduz, mas que questiona e confronta poeticamente, traçando-lhe caminhos mais idealistas. Ou não fosse ele poeta andarilho, habituado a mostrar a sua Angola pelo mundo fora.

Os livros são pretexto para a conversa. Mas não só: A política, como não podia deixar de acontecer, também foi tema de conversação.

Comecemos pelo seu "Imprescindível Doutrina Contra", nascido do inconformismo que ele diz manter e pelo seu amor a África, em especial a Angola, que o poeta garante estar mais vivo do que nunca.

NJOnline - Fale-nos um pouco deste "Imprescindível Doutrina Contra" que começou por ser editado em Portugal e agora em Angola.

LF - É um livro de intervenção social e política, mas é preciso dizer que não é político. Ou melhor, é-o, mas poeticamente.

Este livro é sobre Angola, mas também sobre outros países. Levou-me cinco anos a escrever e tem textos referentes à gestão e à prática quotidianas do Zimbabwe, por exemplo, porque ultimamente, em todas fotos do Presidente do Zimbabwe a que tive acesso, ele está a dormir. Dos dois Congos, do Senegal, Etiópia, Moçambique, Malawi, e África do Sul, por causa dos problemas da xenofobia constante.

De Angola, falo das mortes do jovem Rufino António de 17 anos, no Zango, e também do caso Cassule e Kamolingue, dois jovens que por revindicarem os seus direitos foram dados aos jacarés no rio Ndande.

Se o próprio Estado julgou e condenou, porque é que eu, poeta, irei sentir-me impedido de referir o facto? Se o assunto foi público, como é que eu, poeta, fico proibido de escrever sobre isso?

Enquanto poetas, não estamos impedidos de chorar os nossos mortos, nem de recordar os nossos entes queridos, não estamos proibidos de cantar os feitos e glórias dos nossos povos.

Cabe a nós, poetas, exaltar o que temos que exaltar e condenar o que temos que condenar, sempre da perspectiva das palavras poéticas e não das palavras políticas.

Porque eu sou um poeta e não um activista político. Digo que a minha intervenção é poética e não política, pois o meu objectivo não é fazer política com a poesia mas chamar atenção a quem estiver distraído.

NJOnline - Já tentaram calar essa "voz poética"?

LF - Não, porque eu não me calo! E no dia em que tentarem calar-me eu falarei mais alto ainda.

NJOnline - Hoje há muita gente a escrever, como é que avalia isso?

LF -Acho que é bom, não importa como, mas é muito bom. No entanto, escrever é uma coisa, produzir arte é outra. Na literatura existe um apuramento estético e ético, há sempre uma necessidade de contrabalançar os aspectos éticos que a escrita normal não tem.

Os escritores têm de fazer o seu papel enquanto fazedores de arte, e, como diz Mia Couto, "estamos num País que produz ricos mas não produz riqueza", porque neste País existe uma centena de homens que, juntos, formam o PIB, dessa Angola toda.

E é aqui que os grandes e bons escritores devem ser chamados a opinar poeticamente e artisticamente, chamando a atenção para os fenómenos sociais que alguns agentes do nosso tempo aparentemente não vêem.

NJOnline - Tais como...

LF - Na época do colonialismo, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Aires de Almeida Santos, ou António Jacinto, Craveirinha em Moçambique, Amílcar Cabral na Guine, criticaram as práticas sociais da época. Agora, conquistada a nossa independência, porque é que os nossos artistas se sentem inibidos ou proibidos de denunciar determinadas práticas políticas e partidárias que contrariam o espirito da nossa independência pela qual se bateram esses homens que acabo de nomear?

NJOnline - Portanto, os artistas têm um papel fundamental.

FJ - Sim, sim. E não se podem calar, porque uma sociedade nunca será justa enquanto as injustiças e desigualdades estiverem assim como estão em Angola, Moçambique, Guiné.

NJOnline - E a nova geração de escritores?

LF - Eu tenho uma opinião e recebe quem quiser... Quem na verdade quer ser um bom escritor, primeiro tem de ser bom leitor. Qualquer escritor que se preze deve ler muito, tem de saber o que os outros estão a escrever dentro e fora do seu País.

Em Angola há um grande problema, porque temos muitos jovens que se arrogam escritores e não lêem. E se lêem, lêem pouco. Estão mais preocupados em escrever do que em ler. E quem não lê, não domina a língua em que escreve, que é a arma principal do escritor.

O que me parece é que a nova geração de escritores parece que já nasceu sábia.

NJOnline - O Lopito Feijó foi político...

LF - Tornei-me político porque o País assim mo exigiu, na representatividade artística e literária para desempenhar as funções de deputado à Assembleia Nacional em 1992.

Fui para quatro anos e acabei por ficar 16, imaginem como ficou a minha vida literária. O País estava numa fase de transição. Era o multi-partidarismo, e Angola precisava de nós que éramos os mais representativos. E assim fomos, desde músicos a escritores. Eu, o Costa Andrade, o João Maymona, o João Melo, a Conceição Cristóvão, o Rui Augusto, e tantos outros de que o País precisava naquela altura.

Mas eu sou poeta, porque eu vivo com prazer na poesia. É no mundo artístico que navego há 40 anos, e é aqui que me sinto melhor.

NJOnline - Sente-se valorizado enquanto autor angolano?

LF - Sinto, sim, e não estou arrependido, embora às vezes pense que sou mais valorizado no exterior do País do que aqui. Porque eu tenho espalhado pelo mundo milhares de exemplares, que ainda acho pouco, mas em Angola nem tanto assim.

Posso revelar em primeira mão que no dia 2 de Setembro deste ano, irei a Portugal onde vou receber um prémio de carreira, juntamente com outros nomes da literatura lusófona, pelo contributo que dei à língua portuguesa. No entanto, vejam que uma carreira de quase 40 anos é reconhecida a partir de Portugal. Infelizmente nós, africanos, pensamos que prémio vindo de fora é sempre melhor.

NJOnline - Acha que já deveria ter recebido o prémio Sagrada Esperança?

LF - Não, porque também não concorro. Conheço bem como funcionam os malabarismos dos corpos de jurados nas avaliações dos prémios. Aqui e não só.

Mas defendo mais prémios - nas municipalidades, nas instituições culturais. Nesta altura, a União dos Escritores Angolanos não tem nenhum prémio instituído, a Brigada Jovem de Literatura também não, a Academia de letras tem de instituir um prémio, pois isso estimula as práticas artísticas no País.

Portugal neste momento tem instituídos mais de 56 prémios literários anuais e 36 festivais de literatura também anuais. Porque é que entre nós não há festivais nem feiras? O Estado também não fomenta isso, o que é muito triste.

A cidade de Luanda, que é uma das melhores metrópoles da África Austral, não tem um festival literário como deve ser. Porque é que a gestão da província não está preocupada com a cultura? Então eu questiono: Até quanto é que a cultura vai ser um enteado neste País?

NJOnline - Fale-nos mais sobre essa ideia de que a cultura é enteada do Estado...

LF - Até há pouco tempo a nossa própria incompetência estava a empurrar toda a culpa para a guerra que vivíamos. Por tudo e por nada, culpava-se a guerra. Mas já lá vão 15 anos deste o fim da guerra, já avançámos em alguns aspectos, de carácter material, na nossa sociedade - com as construções das centralidades e um certo investimento invisível na saúde, educação e construção civil, sem grande expressão e com muitas universidades sem qualidade.

Constroem-se as centralidades, mas há muitas gerações a viverem ainda dentro da mesma casa - pais, avós, netos e bisnetos. Mas o desenvolvimento material tem de ser acompanhado do desenvolvimento espiritual, a sociedade tem que se desenvolver de forma equilibrada.

Por exemplo, eu não vejo lógica daquela nova mega Assembleia Nacional, enquanto estamos a precisar de investir no homem, porque um homem culto é um homem rico.

Falta é crescer o nível de consciência social, e principalmente do desejo de servir e não de ter.

NJOnline - Em Angola é possível viver da literatura?

LF - Taxativamente, não é! Eu vivo da literatura porque sou um "poeta profissional". Hoje vivo a viajar pelo mundo por causa da poesia. Em alguns casos pagam-me as deslocações, mas eu sobrevivo com uma reforma vitalícia da Assembleia Nacional, e, segundo o estatuto das Assembleia Nacional sou deputado reformado.

Então, eu sou um caso especial daqueles que vivem da sua poesia. Porque a poesia é que me levou ao parlamento e o parlamento é que me dá a pensão vitalícia. Por isso, vivo da poesia.