Em 1958, numa crónica sobre o futebol, o jornalista menciona uma figura da Psicologia até então desconhecida: «o complexo de vira-lata». Ele tinha a particularidade de usar esta modalidade como metáfora para explicar o seu Brasil, o mundo e a vida.

O «vira-latismo», como alguém já o apelidou, é uma espécie de bota-abaixo, uma promoção e valorização constante da nossa mediocridade, falta de ambição e puro complexo de inferioridade.

Este complexo de inferioridade é um narcisismo às avessas, é um complexo que menospreza tudo quanto se passa ou acontece entre nós. Porque negamos certas realidades que existem no nosso seio? Porque nos calamos perante o nosso próprio sofrimento? Somos uma sociedade de negação do enfrentamento, da negação da dor e do sofrimento do próximo.

Não podemos deixar que certos complexos nos criem maus costumes ou uma «suspensão» do orgulho nacional, da defesa do que é nosso, da indignação pelo sofrimento dos nossos irmãos ou compatriotas. A morte do cidadão afro-americano George Floyd levantou, nos EUA e no mundo, em geral, o debate sobre o racismo e a violência policial.

A América esteve a «ferro e fogo» durante as últimas semanas, houve manifestações em mais de 140 cidades, saques a estabelecimentos comerciais e confrontos entre cidadãos e a polícia. Donald Trump apela à sua base extremista e acredita que isso lhe vai trazer votos. Acreditar é mais fácil do que pensar. Daí existirem mais crentes do que pensadores. «Black Lives Matter» (As Vidas Negras Importam) tem sido o mote da campanha das organizações que realizam os protestos em torno da morte de negros, causadas por polícias, brutalidade policial e pela desigualdade no sistema de justiça dos EUA.

Numa altura em que o mundo está focado na violência policial exercida sobre cidadãos, por causa da morte de George Floyd, em Angola, a Polícia Nacional anunciou que estão detidos 10 agentes por envolvimento na morte de cidadãos, desde o dia 27 de Março último, período em que foi declarado o estado de emergência. Até ao momento, pelo menos 10 cidadãos já perderam a vida, devido ao uso excessivo da força policial por parte de alguns efectivos da corporação. É estranho ver tais mortes e a repressão policial parece não "mexerem" com as pessoas por cá, parece que não causam indignação social às pessoas.

A morte do afro-americano é um acto reprovável e condenável. Vejo figuras públicas angolanas e outros cidadãos que se movimentam activamente nas redes sociais, na comunicação social, mobilizando e participando em manifestações em torno deste «Black Lives Matter», mas que não têm a mesma energia, a mesma disposição, a mesma indignação para condenar a repressão policial e as mortes que lhes estão associadas. Há aumento de criminalidade, é morto um sindicalista à porta de casa, um inspector das Finanças é barbaramente assassinado, mas a sociedade não pressiona, não cobra explicações das autoridades.

As mortes de lá provocam cá grandes destaques na comunicação social, ocupam as primeiras páginas de jornais, abrem telejornais e noticiários nas rádios. As mortes de lá provocam debates na comunicação social e acesas discussões nas redes sociais. Sugerem-se petições, entregam-se cartas de protesto e reclamações. Tudo e todos se importam com a repressão e as mortes que vêm de lá. E o que acontece por cá? Não mexe, não abala, não é chique, não está na onda e não é «politicamente correcto». Foi assim com o pequeno Rufino. Vimos isso com Joana Kafrique. Foi e será sempre assim, a nossa indiferença com aquele que está aqui próximo.

É este «complexo de vira-lata» que temos de superar. Fugimos dos nossos problemas, não enfrentamos a nossa realidade, criamos zonas de conforto, trazemos ao debate temas de lá para fugir da realidade cá. As nossas «makas», as nossas mortes "doesn"t matter" (não importam). Este «complexo de vira-lata» não nos vai ajudar a perceber que «All Lives Matter» (Todas as Vidas Importam). Todas mesmo. As de lá e as de cá.