Cyril Ramaphosa aproveitou a ida ao Zimbabué, onde, no Sábado, presenciou, em conjunto com outros Chefes de Estado e de Governo africanos, incluindo o Presidente João Lourenço, as cerimónias fúnebres do antigo líder zimbabueano Robert Mugabe, para pedir desculpa e defender a ideia de que o povo sul-africano "não é xenófobo".

Este pedido de desculpa foi feito na capital de um dos países cujos cidadãos mais têm sofrido na África do Sul, país para onde mais zimbabueanos emigraram nos últimos anos dos Governos de Mugabe que deixaram o país com uma pobreza extrema generalizada e afogado em corrupção e desemprego.

Ramaphosa envergou a pele de "um irmão africano" para lamentar e "pedir desculpa" pela violência que os "irmãos africanos" sofreram na África do Sul, o que vai, sublinhou, "contra aquilo que são os princípios da unidade dos povos africanos", que garantiu que o seu Governo trabalha empenhadamente para que sejam "bem recebidos".

Esta atitude do Presidente sul-africano era uma exigência manifestada por muitos dos seus homólogos africanos e pela mais alta instância continental, a União Africana, que deve ser acompanhada de "medidas concretas" para acabar com os ataques contra os migrantes que nos últimos anos se têm repetido, com uma vasta lista de mortes entre as comunidades estrangeiras.

Zimbabueanos, zambianos e moçambicanos são os mais visados nos últimos anos, mas nestes ataques mais recentes, o ódio claramente xenófobo virou-se contra os nigerianos, cujo Governo reagiu com uma postura claramente distinta da apatia dos restantes, tendo sido gerado um forte movimento de contestação na Nigéria, desde a união dos músicos contra estes actos, até ao cancelamento num importante fórum económico na Cidade do Cabo, ou ainda a organização de uma ponte aérea para retirar os nigerianos que quisessem abandonar a África do Sul.

Esta reacção, que levou a que países como a Zâmbia e Madagáscar recusassem entre em jogos desportivos com a África do Sul, foi a mais robusta contra a violência xenófoba de sempre no país mais austral de África, também ele a atravessar uma severa crise económica, com um desemprego galopante, pobreza extrema e em fase de generalização, criminalidade nunca vista, um sistema de saúde em colapso e os investidores estrangeiros em debandada devido à radicalização das políticas governamentais que, por exemplo, levou a que fosse legal a expropriação de propriedades da comunidade banca sul-africana para serem entregues aos negros.

A forte resposta nigeriana

Como o NJonline noticiou no passado dia 08, a reacção nigeriana surgiu primeiro com os artistas do mais populoso e a maior economia africana a cantarem alto a condenação dos ataques contra os seus compatriotas na "Nação Arco-Íris", como assim a baptizou Nelson Mandela, fazendo lembrar a atitude de dezenas de estrelas do pop-rock mundial que se recusaram a actuar na África do Sul por causa do apartheid, dando início a uma avalanche de contestação global, usando a música "I ain't gonna play Sun City!, de Steven Van Zandt, músico da banda de Bruce Springsteen.

E depois com a resposta local contra interesses sul-africanos na Nigéria, como as lojas Shoprite ou os balcões do gigante das telecomunicações MTN, que acabaram incendiadas, tendo todas sido entretanto encerradas, ao mesmo tempo que Pretória mandava fechar as suas representações diplomáticas em Abuja e em Lagos, alegando razões de segurança.

Com um claro crescendo da tensão ao nível dos governos, depois de países como a Zâmbia - cujos nacionais, a par de moçambicanos ou zimbabueanos, entre outros, tinham sido igualmente atacados -, terem, por exemplo, cancelado eventos desportivos onde estavam com equipas sul-africanas, internamente, na África do Sul, também se procurou minimizar danos, condenando-os ou divergindo as atenções para a comunidade branca.

O Presidente Cyril Ramaphosa, apesar de ter timidamente condenado os ataques logo que estes sucederam, alguns analistas relembraram a sua frase trágica em Abril deste ano, antes das eleições gerais que o elegeram, anunciando medidas severas contra os estrangeiros que se instalam nos subúrbios das cidades sul-africanas como se estivessem em casa e que pode ter facilitado estes ataques xenófobos apenas porque culpar os estrangeiros pelo desemprego galopante era a melhor forma de desviar as atenções do fracasso do Governo do Congresso Nacional Africano (ANC) nesse campo e também no combate à mais severa crise económica que o país atravessa desde o fim do regime do apartheid, em 1994.

Difícil de interpretar é a intenção do secretário-geral do ANC, Ace Magashule, uma das figuras mais importantes do partido que governa a África do Sul desde que Nelson Mandela assumiu o poder em 1994 após a queda do regime racista, que veio dizer, num momento em que as ruas das cidades sul-africanas ainda estão a escaldar, que os brancos sul-africanos "também são estrangeiros", o que foi de imediato interpretado como uma frase que visa mudar o alvo da fúria dos sul-africanos afogados em desemprego e pobreza extrema cada vez em maior número, na senda da nova legislação que permite confiscar terras aos brancos para as entregar aos negros sem direito a indemnização.

"Não podemos ter este comportamento com pessoas que têm a mesma cor de pele que nós. A sua cor é a mesma, independentemente de serem provenientes da Nigéria, de Angola ou Moçambique, ou de qualquer dos 54 países do continente africano... temos de ter em conta que somos africanos", disse Magashule no mesmo vídeo onde sublinha que os brancos podem ser chamados "estrangeiros" porque têm um tom de pele diferente.

Ao mesmo tempo, Julius Malema, o líder dos Combatentes da Liberdade Económica (EFF, sigla em inglês para Economic Freedom Fighters), um radical anti-comunidade branca oriundo das fileiras do ANC, de onde foi expulso por exagerado radicalismo, veio pedir aos sul-africanos que sejam complacentes com os negros estrangeiros porque "foram os brancos que instigaram o ódio entre os negros" no país.

"Ninguém está a tirar empregos aos sul-africanos, os empregos estão a ser oferecidos aos estrangeiros por quem detém os meios de produção, que são os brancos, normalmente ditos como sector privado, que é o mesmo que dizer a comunidade branca", disse Malema em mais uma tentativa de levar a fúria para o seio da comunidade branca, que o líder dos EFF insistentemente cola ao antigo regime do apartheid.

PR da Nigéria foi a Pretória - Uma demonstração surpreendente de força

Depois de o seu governo, entretanto seguido por outros, incluindo a União Africana, ter severamente condenado a inércia do governo sul-africano na forma como tem lidado com a crescente vaga xenófoba, e depois de ter cancelado a participação nigeriana no Fórum Económico Africano, na Cidade do Cabo, o Presidente da Nigéria, Muhammadu Buhari, anunciou uma visita de Estado à África do Sul.

Buhari faz esta visita em Outubro com a sua agenda oficial, segundo a imprensa nigeriana, a colocar esta tensão social e política entre os dois países no topo da agenda, onde dificilmente haverá outro tema para discutir face à gravidade da actual situação, depois de ter enviado uma missão especial a Pretória para entabular conversações iniciais com Cyril Ramaphosa.

Esta visita é importante no contexto africano e mundial porque se trata das duas maiores economias do continente e sem as quais dificilmente poderão avançar algumas das mais almejadas reformas económicas pan-africanas.

Isto, apesar de a África do Sul estar há alguns anos a resvalar economicamente e nos índices de desenvolvimento humano internacionais, ao contrário da Nigéria, que já passou o país austral em matéria de Produto Interno Bruto (PIB).

Tudo começou...

Com cerca de meia centena de pessoas detidas pela polícia sul-africana que no início deste mês tomou de assalto as ruas de Joanesburgo para conter uma onda de pilhagens e violência que levou o centro e vários bairros da maior cidade sul-africana a ficar semelhante a uma zona de guerra, na qual foram registadas pelo menos três mortes nos primeiros dois dias - no total foram contados 12 mortos - e dezenas de feridos.

Os problemas surgiram durante o fim-de-semana de 6 e 7 deste mês na área de Jeppestown e zonas urbanas envolventes e nas primeiras horas de segunda-feira seguinte, no meio dos tumultos, ocorreram dezenas de focos de incêndio, especialmente carros e caixotes de lixo, mas também edifícios, e um número por determinar de lojas foram pilhadas e equipamentos públicos destruídos.

Como tem sucedido na generalidade das situações semelhantes que têm ocorrido por toda a África do Sul, ao longo dos últimos meses, a última das quais em Pretória, na passada anterior, a acção claramente xenófoba foi reconhecida pela imprensa de imediato embora as autoridades tivessem tentado negar esse facto.

Estes episódios surgiram depois de a própria polícia ter detectado movimentações organizadas via redes sociais.

Estes tumultos surgem numa altura em que a África do Sul assiste a uma greve nacional de camionistas que visa exigir aos empresários que não contratem motoristas estrangeiros e que tem causado problemas em todo o país...

Recorde-se que as vagas de violência xenófoba na África do Sul têm sido recorrentes nos últimos anos mas ganharam maior intensidade de 2017 até agora, por causa do aprofundamento da crise económica e social sul-africana, com um desemprego crescente, pobreza extrema galopante e com muito investimento externo a deixar o país, com alguns analistas a ligar esse facto à políticas locais de "sul-africanização" da economia devido ao confisco de bens propriedade de brancos para entregar aos negros.

No entanto, o que é igualmente reconhecido por alguns analistas, é que por detrás desta realidade está a estratégia de interesses organizados no seio da comunidade branca para espalhar o caos que conduza à contestação ao Governo do ANC com o objectivo de potenciar o crescimento dos partidos mais "amigos" da comunidade branca.

Mandela e o esboroar do ideal "Arco-Íris"

Nelson Mandela, durante a sua detenção de 27 anos por lutar contra o regime fascista do apartheid ou após a sua libertação e eleição para Presidente da África do Sul, sempre defendeu que o seu país devia ser um espaço onde todos tivessem lugar, independentemente da sua cor.

São bem conhecidos os seus posicionamentos em prol de uma "Nação Arco-Íris", designação que criou para enfatizar a necessidade de a cor deixar de ser determinante, mas algumas das suas frases são exemplarmente claras nesse sentido, claramente a serem postas em causa hoje, como esta, de 1964:

"Durante a minha vida, dediquei-me à luta do povo africano. Lutei contra a dominação branca, lutei contra a dominação negra. Pugnei sempre por uma sociedade livre e democrática, onde todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com igualdade de oportunidades. É um ideal que espero possa viver e conseguir. Mas, se necessário, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer!"

("During my lifetime I have dedicated myself to this struggle of the African people. I have fought against white domination, and I have fought against black domination. I have cherished the ideal of a democratic and free society in which all persons live together in harmony and with equal opportunities. It is an ideal which I hope to live for and to achieve. But if needs be, it is an ideal for which I am prepared to die".)

Ou ainda esta:

"Deixamos um sistema que insultava a nossa humanidade dividindo-nos com base na raça, colocando-nos uns contra os outros como opressor e oprimido. Este sistema cometeu um crime contra a humanidade", de 1998.

("We are extricating ourselves from a system that insulted our common humanity by dividing us from one another on the basis of race and setting us against each other as oppressed and oppressor. That system committed a crime against humanity.")