Cátia é um dos maiores bairros da capital, Caracas. Só ali, vivem perto de três milhões de pessoas, já incluindo as favelas à volta. É um bairro popular, conhecido por ser um barómetro social do país: quando ali as coisas começam a mudar, todo o país muda.

Glisel Salgado, assistente social, com 52 anos, trabalha num programa para a colocação de crianças abandonadas em famílias substitutas, na Fundação Mi Família, e é nesse contexto que lida com uma realidade muito preocupante: "Demos conta de que há agora muitas crianças institucionalizadas porque as famílias emigraram e deixaram as crianças na rua".

Há ainda os casos de crianças que ficaram entregues a alegadas "famílias", mas não são mesmo família e esse "é um grande problema", segundo Glisel.

"Há situações de crianças que sofreram abusos sexuais, abandono escolar, problemas afectivos, porque não têm carinho familiar", explica a assistente social.

O fenómeno intensificou-se em 2014, mas no ano passado piorou ainda mais: "Eu diria que se tornou um problema de saúde pública. A UNICEF classificou estes casos como a síndrome da criança que ficou para trás", acrescenta Glisel Salgado.

"São crianças que perdem todos cuidados familiares e alguns mantêm-se nas ruas. O ideal era que fossem atendidos, mas só nos inteiramos do caso quando chegam ao hospital, quando se pede protecção porque são crianças desnutridas e com estado de saúde grave, quando se quer falar com pai ou a mãe, não há pais...", denuncia aquela profissional.

Glisel Salgado explica que é preciso fortalecer os programas familiares, porque as famílias substitutas são sempre melhores que a institucionalização.

Quanto a números sobre as crianças de rua, diz não ter estatísticas, mas não tem dúvidas: "posso dizer que são muitos. Muitíssimos".

Reclama a ajuda internacional, mas que não seja só material, e defende mesmo que são precisos profissionais para auxiliar numa situação social "muito grave".

Gravíssima é também a situação no Hospital Los Magallanes de Cátia. Lisette Morávia Zambrano, funcionária do hospital, 48 anos, fala na falta de pessoal, médicos e enfermeiros que foram embora, e que não há materiais tão simples como compressas, ligaduras e seringas.

"Os pobres vão morrendo, porque não têm recursos para pagar os exames. Há muitos "bachaqueros" [vendedores de rua] a vender os materiais hospitalares. Aproveitam-se da situação do país para roubar aos mais pobres. São estes que pagam", desabafa.

Fala também na falta de medicamentos e na venda de outros sem quaisquer garantias de controlo de qualidade: "Não se sabe se são verdadeiros se são alterados".

Mais um exemplo da situação caótica do hospital onde trabalha, Glisel diz que, em sete dias da semana, cinco não têm água. Faltam lâmpadas, muitas vezes falha a electricidade.

Glisel também pede a ajuda internacional. Diz que é urgente ajudar os hospitais com equipas de profissionais, aparelhos de diagnóstico que não funcionam.

Reconhecendo que muita gente tem medo, até porque o Governo armou os chamados "colectivos", a funcionária do hospital defende uma mudança no País e observa que até os antigos apoiantes do regime estão a perceber que não é possível viver assim: "As pessoas estão a dizer que já basta!".

Pedro Alfonso, 68 anos, é um antigo pintor de automóveis e sofre de Doença Pulmonar Obstrutiva. Recebe os jornalistas na sua casa modesta, visivelmente fragilizado, queixando-se de não conseguir medicamentos. Com um tubo de oxigénio que o ajuda a sobreviver, lamenta não conseguir andar na rua, porque se cansa demasiado.

Quanto ao futuro, espera que o país mude. "E que mude tudo, que vivamos como se vivia antigamente, que tínhamos tudo, com medicamentos na farmácia", afirma.

Mitchel Garcia, tem 41 anos, está deitado num quarto, que cheira a urina. A companheira morreu recentemente com sida, ele sofre do mesmo. O amigo que o acompanha lamenta que não se consigam medicamentos. Fala numa infecção generalizada, em vários problemas: "Amanhã vou levá-lo para o hospital".

Aurora Scorza, tem 60 anos, foi administradora de seguros e é, há 22 anos, diabética. Nos últimos anos quatro anos piorou bastante por falta de medicamentos.

O que a revolta é o facto de lhe exigirem o "cartão da pátria" nos departamentos governamentais para poder receber ajuda medicamentosa.

"Não sou "chávista", e por isso não conto com ajuda do Governo quando chegam medicamentos", explica Aurora, amargurada.

"Eu nunca pedi esse cartão. E não vou pedi-lo porque não estou de acordo com este regime que tomou a Venezuela. Esse cartão é usado por este Governo de maneira discriminatória", lamenta a antiga administradora de seguros.

Assumindo-se opositora do regime de Maduro, Aurora pede ao Governo que permita o acesso à ajuda humanitária. "É de vital importância para os doentes crónicos, os hospitais têm muita falta de medicamentos. São 300 mil pessoas que se encontram em situação grave, que estão entre a vida e a morte e o acesso a esses medicamentos pode salvar vidas", destaca.

Milleyes Teys é insuficiente renal, com 71 anos, mas sofre de mais algumas maleitas graves. Também é diabética, hipertensa, sofre de convulsões e tem um aneurisma no braço.

Há uma semana esteve quase a morrer com uma convulsão, mas continua a não conseguir os medicamentos de que tanto precisa.

"Precisamos de ajuda internacional. Quantas crianças e velhinhos estão a morrer por falta de medicamentos?", questiona.
Milleyes começa a chorar quando se lembra do que era a Venezuela onde cresceu. "Que aconteceu à Venezuela que eu conheci? Eu tenho 70 anos. Eu conheci uma Venezuela em que eu ia ao supermercado e comprava o que queria e sobrava dinheiro. Agora não há nada e não há dinheiro. Vejo crianças a comer do lixo. É triste", lamenta.

A crise política na Venezuela agravou-se em 23 de Janeiro, quando o líder da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, se autoproclamou Presidente da República interino e declarou que assumia os poderes executivos de Nicolás Maduro.

Esta crise política soma-se a uma grave crise económica e social que levou 2,3 milhões de pessoas a fugirem do país desde 2015, segundo a ONU.