Em primeiro lugar, aquele relativo à grave crise desencadeada pelo 27 de Maio de 1977. Porém, é triste constatar que a maioria dos que se exprimem publicamente, e em tom extremamente agressivo em artigos e tribunas na imprensa nacional e portuguesa, são, mais uma vez, os defensores da causa do grupo liderado por Nito Alves, recusando assumir qualquer responsabilidade nos trágicos eventos. Ele teria agido contra uma suposta deriva direitista do poder e em prol de uma genuína revolução, revindicação apoiada pelo povo de Luanda que desceu em grande número às ruas da capital - o que não consta de nenhuma das reportagens da imprensa estrangeira presente naquele dia. E, se o desenrolar dos acontecimentos não foi pacífico, a responsabilidade é exclusivamente do regime da altura e da intervenção das tropas cubanas "que esmagaram os revolucionários", outra mentira. Esta é a narrativa dominante veiculada por estes autores, afirmando, contra todas as evidências, que os «nitistas» caíram na armadilha de um plano «maquiavélico» urdido para aniquilar a verdadeira ala revolucionária no seio do MPLA.

Em suma, não houve tentativa de tomar o poder pelas armas, e a «intentona» seria uma «inventona», escreve um ardente defensor dos revoltosos. Com uma incrível audácia, a reinvenção daqueles eventos fornece detalhes que não resultam de investigações. Ignoram os relatos do único sobrevivente da chacina ocorrida no bairro Sambizanga naquela noite, onde morreram valiosos comandantes da guerrilha anticolonial e da guerra contra os invasores sul-africanos, bem como figuras do Governo. O general Ciel da Conceição «Gato», que se encontrava entre os presos, reconheceu perfeitamente os militares que os levaram a um quartel dos dissidentes e que, depois da derrota, os entregaram a um grupo de marginais do Sambizanga, encarregues de os matarem. Estes atiraram com uma metralhadora através da porta da casa de banho de uma casa do musseque onde todos os presos tinham sido encurralados.

Foi a aproximação dos corpos que salvou o comandante Gato, que, ferido e amarrado, assistiu impotente à agonia dos seus companheiros. Nenhum deles tinha sido feito prisioneiro em combate. Alguns foram apanhados nos respectivos carros quando se dirigiam aos seus gabinetes, desconhecendo o que estava acontecendo. Outros, presos em casa ou no quartel onde os primeiros eram detidos para pedir explicações. Difícil reivindicar, sem manchar a memória dos «heróis» nitistas, um tão cruel acto ocorrido quando os seus líderes já estavam em fuga. É mais oportuno insinuar que foram mortos pela segurança do Estado, a DISA. Nas últimas décadas, as narrativas anti-Neto foram-se construindo à volta do objectivo de demonstrar uma premeditada repressão do grupo liderado por Nito Alves e José Van-Dúnem, expulsos do Comité Central do MPLA uns dias antes do 27 de Maio. Os apelos do Presidente Neto na Rádio Nacional, na manhã do dia 27, procurando manter o diálogo com os revoltosos e preservar a vida dos dirigentes capturados, não constam de quase nenhuma destas narrativas.

Nas últimas décadas, cada aniversário daquele dia dramático tornou-se uma ocasião para uma escalada nos ataques virulentos contra o primeiro Presidente de Angola e de afirmações no mínimo excessivas sobre a natureza do regime da altura. Assim, Agostinho Neto é insistentemente descrito como "o ditador mais sanguinário de África", comparável ao chileno Pinochet, e segundo alguns até ao próprio Hitler (!), do qual "copiou as receitas para liquidar a oposição interna"! Para além de «maquiavélico», «desumano» e «vingativo», o líder angolano chegou, recentemente, a ser comparado aos "esclavagistas"...! Questão de ensaiar uma proximidade com o movimento mundial anti-racista que ressurgiu com força nos últimos meses.

Com o fim de realizar uma posterior passagem que leve ao total descrédito do poder liderado por Neto, alguns destes autores descrevem as atrozes condições de repressão levada a cabo pela ditadura argentina (1976-1983) contra as forças progressistas daquele país, como tendo sido as mesmas praticadas em Angola na altura - tais como o despejo para o mar de presos vivos pelos aviões da força aérea, facto histórico do qual foi realmente responsável a junta militar de Buenos Aires.

A credibilidade de tais afirmações no caso de Angola não parece preocupar minimamente os que as difundem, que não recuam perante nada para tentar incutir o horror na opinião nacional e internacional.

Nesta campanha para denegrir Agostinho Neto, os cálculos das vítimas da repressão exercida pelo Estado atingiam, há uns anos, o número de 92 mil mortos. Mais recentemente, as diferentes versões acordaram um número de 30 mil - ou seja, e mais uma vez, tanto quanto as vítimas da junta fascista argentina. Em termos de comparações históricas, é útil lembrar que esta última ficou no poder durante sete anos, agiu num país com pelo menos 28 milhões de habitantes, ou seja, três vezes mais do que Angola na altura, prendeu e matou, à vista de muitos, milhares de oponentes, enchendo estádios, campos e prisões.

Os que viveram em Angola naqueles anos não podem, honestamente, testemunhar uma repressão que teria eliminado mais de um tão elevado número de quadros residentes na capital na altura, à revelia da maioria dos seus habitantes, em particular dos numerosos observadores e organismos internacionais, jornalistas, militantes políticos ou espiões estrangeiros.

Uma das missões da comissão será dar os nomes às vítimas da repressão, convidando os familiares a manifestar-se, e, o que seria muito apreciável para fazer progredir o debate, abrindo os arquivos dos antigos órgãos de segurança.

(Continua na próxima edição)

*Jornalista italiana que residia em Angola na altura.