Desde que entrou em funções, o Executivo de João Lourenço tem vindo a tomar uma série de decisões que o distanciam da anterior gestão política do país, ficando por responder apenas à inquietante pergunta se o faz simplesmente por uma questão de sobrevivência política ou se o faz de facto porque é chegada a hora de alterar todo um paradigma que custou caro ao país e colocou o seu Executivo numa situação de estrangulamento.

Ao condecorar nesta quinta-feira, 7, o jornalista Rafael Marques, pelo seu empenho no combate à corrupção no país, João Lourenço abre caminhos para leituras não menos importantes à volta, não só do acto em si, como também do significado que este pode suscitar a todos nós.

Rafael Marques liderava, até há pouco tempo, a lista daqueles cidadãos angolanos que eram acusados de serem financiados por organizações estrangeiras que pretendiam "semear o caos no país e descredibilizá-lo na arena internacional". Rafael Marques fez também, através do seu Maka Angola, uma série de denúncias sobre alegados actos de corrupção sobre os quais a Procuradoria-Geral da República nunca se pronunciou. Estranhamente esta mesma figura que tinha o rótulo de um "vendedor de pátria" aparece nos escaparates da sociopolítica nacional actual como um "pioneiro" no combate à corrupção, deixando uma intrigante pergunta: e agora? Agora é que, se de facto esta condecoração responde às aspirações de uma nova Angola, é suposto que o emaranhado de crimes que denunciou o jornalista conheça um tratamento diferente daquele que teve da justiça angolana.

Porque senão não faz sentido condecorar um jornalista de investigação quando os denunciados andam impunes e acobertados pelos próprios órgãos de justiça.

É importante que esta nova Angola, que o Executivo de João Lourenço pretende apresentar ao país, não seja apenas uma forma de dizer que se está a fazer diferente, quando não há qualquer responsabilização pelos numerosos males que foram praticados no país. E não é de todo verdade que estes males tivessem tido como único responsável o anterior chefe do Executivo. Existem figuras muito bem identificadas a quem se poderia pedir responsabilidades.

É preciso que o Executivo não use ou não faça da figura de Rafael Marques uma espécie de urso de peluche e nem uma espécie de troféu contra o anterior Executivo, como demonstração pública de mudança. É preciso que este passo que se deu no sentido de o condecorarem seja um sinal mais do que evidente de que qualquer profissional do jornalismo em Angola é tão igual a Rafael Marques nas investigações que leva a cabo, e não apenas por ter sido Rafael Marques um dos "irritantes" em relação ao anterior Governo.

Entretanto, não deixa de ser importante afirmar que estas condecorações abrem também caminho para outras leituras sobre Angola e os angolanos.
Há um passivo que o Executivo de João Lourenço continua a deixar de parte: a História de Angola. Não é possível que a História oficial do país continue amarrada a estereótipos e heroísmos forjados para que uns fossem ostracizados e outros exaltados como actores importantes na fundação da pátria angolana.

É preciso que estes pequenos gestos que buscam emitir sinais de alteração no panorama político nacional não façam perdurar por muito mais tempo a urgente necessidade de os angolanos poderem encontrar-se com a sua própria memória colectiva.

Angola tem um longo caminho a fazer no sentido de recuperar o tempo perdido, mas este percurso não pode ser feito baseado em conveniências que coloquem em causa a verdade histórica do país. Temos hoje de assumir um caminho que não seja um atalho para fugirmos ao compromisso de começar a fazer a devida correcção em relação às atrocidades que foram cometidas ao longo de anos. Todas as vidas que se perderam devem ser honradas com o melhor que cada angolano tem para dar em prol da pátria. E o Executivo tem a responsabilidade de dar o primeiro passo e ser a referência positiva para o país.