A minha mesa ficava encostada às vidraças enormes que davam para o jardim. Essas vidraças eram do tamanho das paredes da sala da redacção, e notava-se perfeitamente como elas abanavam, com o som dos rebentamentos vindos de Kifangondo.

Sabíamos que estávamos sitiados em Luanda, mas ninguém arredava pé.

O ambiente na redacção era de determinação. Cada um de nós era um combatente que queria levar a sua tarefa até ao fim, que era atingir a independência de Angola.

O chefe de turno era o João Melo, se a memória não me falha, e a mesa ao meu lado, o redactor mais novo, o Rui Malaquias (e morreu tão cedo...). Isto para não falar de muitos outros nomes que seguiram os seus caminhos, mais tarde.

Entretanto, chegou a hora de saída.

Eu tinha tanta coisa para fazer, mas não sabia por onde começar. Só queria que chegasse a meia-noite.

Quando saí, dirigi-me para o meu velho DAF 55 (já não se fabricam) e saí para a minha casa na Vila Alice, na rua que ainda hoje mantém a sua velha placa toponímica, e era, até essa altura, o maior nome de rua da cidade de Luanda, a rua Arsénio Pompílio Pompeu do Carpo.

Entrei em casa e fui tomar banho. Havia água! Só nós de Luanda sabemos o que isso significa. Foi nesse cerco a Luanda que começaram a sabotar as condutas de água que forneciam a nossa cidade. Sequei-me e vim cá para fora sentar-me nas traseiras do quintal, para me acalmar. Eu estava ansioso. Pouco tempo depois, começou a aparecer amigos a combinarem como e a que horas íamos para a celebração.

Depois de tudo combinado, peguei no carro, com mais três amigos e fomos ver o ambiente da cidade. Era coisa de jornalista, é claro.

A cidade estava parada, num ambiente de expectativa, próprio do grande momento por que todos esperávamos.

Um dos amigos levou umas sandes e umas cervejas, e comemos dentro do carro.

Enquanto comíamos, íamos sonhando, com o que cada um de nós queria para a Angola independente. Eu adiantei-me logo e disse que queria o fim dos musseques, e a criação de bairros dignos, que acabassem com o que chamávamos, a cidade do asfalto e a cidades da terra batida. Casas com água canalizada e saneamento básico e com ruas asfaltadas, mais jardins para as crianças brincarem sem perigo.

Outros diziam que queriam hospitais e centros de saúde perto dos bairros, e cinemas e salas de cultura para o desenvolvimento do Povo.

Sonhámos tanto que nem demos pelo tempo passar.

Escolhemos um local que ficasse o mais perto possível do grande evento.

Saímos do carro e rumámos para o largo onde seria proclamada a independência. Faltavam umas duas horas, mas já havia centenas de pessoas a caminho para o mesmo sítio.

Os nossos rostos transmitiam todos a mesma coisa, ou seja, uma alegria com olhos brilhantes, e, ao mesmo tempo, o receio do que pudesse acontecer, ali a poucos quilómetros, em Kifangondo.

Ficámos mesmo em frente, a meio da Tribuna, e a uma distância de talvez uns 40 metros ou um pouco mais. Éramos já milhares vindos de toda a cidade. Ninguém podia vir de fora, porque estávamos cercados.

A noite estava quente, exactamente como estavam os nossos corações.

Estávamos juntos! Todos se riam, uns para os outros, mesmo sem se conhecerem. Estávamos mesmo juntos naquele sonho que dentro de momentos seria tornado realidade.

O tempo foi passando, e vimos chegar os dirigentes, os governantes, os convidados, todos que iriam fazer história connosco.

Todos ou quase todos, em pé. O nervoso era muito grande. E então começaram os discursos. No meio de cada discurso, saía uma "palavra-de-ordem" para o povo gritar.

Até que chegou o momento ansiado!

Eu só ouvi um silêncio enorme dentro da minha cabeça.

Sentei-me no chão com os meus amigos, fizemos uma roda e demos as mãos. Todos ali perto fizeram o mesmo. De mãos dadas. Era importante que todos déssemos as mãos dali para o futuro.

Eu fechei os olhos com força e ouvi da boca daquele que seria o primeiro Presidente e fundador de Angola independente:

"...proclamo a independência da República Popular de Angola"

Quando acabei de ouvir as últimas palavras, as lágrimas saltaram!, parecia que estavam à espera. Eu sussurrei, "República Popular", República do Povo, era isto que eu estava à espera ansiosamente. Um país para o Povo que tanto merecia!

O céu iluminava-se com milhares de balas tracejantes, passando sobre as nossas cabeças, numa comemoração arrancada a tiro, pode-se dizer.

Foram abraços, centenas de abraços, entre amigos, conhecidos e desconhecidos, de sorrisos, de muitas lágrimas de alegria e ainda ficámos ali por muito tempo, trocando sonhos. Ao longe, em Kifangondo, ainda o troar dos canhões e das bazucas de mau presságio. Os anos foram passando, quarenta e cinco anos passaram, e quantos sonhos ficaram por realizar, quantos deixaram de sonhar, quantos sofrimentos continuaram a doer, quantas traições iria haver, quanta fome haverias de passar, para deixares de ser popular, minha Pátria?

*Escritor