A Covid-19 veio agravar a situação, porque destapou ainda mais as mazelas, primeiro no sistema de saúde e depois em muitos outros sectores, de que o da Educação é uma das lições mais chocantes. Que o País, no seu todo, só agora toma consciência do estado das escolas, a maioria sem água e sem energia eléctrica, sem casas de banho ou com casas de banho inutilizáveis, é mais um indicador da crise a que se chegou. Crise que ganha contornos preocupantes com as notícias das dificuldades nas negociações com a República Popular da China sobre a moratória da dívida, que nos obriga a pagar de juros 2,3 mil milhões de dólares anualmente, mais de metade do empréstimo que recebemos do FMI. Ainda me parece estar a ouvir um governador do Zaire gritar vivas ao empréstimo da China, há cerca de 15 anos. Por isso, qualquer análise sobre a pandemia e sobre medidas imediatas e vindouras tem de ter em conta o cenário de crise que se vem arrastando e a necessidade de ideias ousadas e inovadoras para enfrentarmos os desafios de um futuro que ninguém consegue prever com rigor. No meu tempo de criança, ainda havia viaturas cujos motores só trabalhavam com alguém a dar à manivela. Os angolanos, todos, precisam de se juntar para dar à manivela a viatura de que precisamos para percorrer a estrada do futuro.

A Covid-19 veio, igualmente, agravar a situação de pobreza. Os dados que conhecemos sobre a Pobreza Multidimensional já eram assustadores. Com o aumento do desemprego, a diminuição do poder de compra e o arrefecimento do mercado informal, o nível de pobreza aumentou e os indicadores são visíveis a olho nu. Perante este facto e as dificuldades com que se depara o Executivo para negociar a dívida, aconselham as mais elementares regras de bom senso a adopção de medidas de contenção de despesas que, insisto, podem ser importantes e necessárias mas seguramente que não são prioritárias - investir num canal de desporto é um dos casos mais recentes, só explicável pelo receio de que um processo de privatização possibilite que ele caia em mãos "impróprias" -, sem o que a credibilidade das instituições, e particularmente a do Executivo, fica muito afectada. Preocupa-me, de sobremaneira, a pouca sensibilidade manifestada pelo Executivo em relação à pobreza, quase limitada ao Projecto Kwenda, que é positivo, sim, mas representa pouco, pois há necessidade e obrigação de se fazer muito mais. Nessa perspectiva, é muito negativo o ressurgimento, agora com o nome de Jovens Solidários, de iniciativas criticadas noutros tempos, incluindo pelo Presidente João Lourenço, pois são claras as intenções propagandísticas em desfavor de acções de governo. A pobreza, entenda-se, é também de uma questão de ética e de exclusão. Continuar a menosprezar os nossos níveis de pobreza é algo socialmente injusto, economicamente desastroso e politicamente perigoso, porque facilmente instrumentalizável. Volto a chamar a atenção de quem de direito para o que se passa em Cabo Delgado (Moçambique), já que os exemplos da nossa história parecem esquecidos.

O modo como se tem gerido a pandemia está longe de ser perfeito, mas não deve ser destratado como se tem visto. Os nossos indicadores, comparados com os dos países comparáveis, não são dos melhores, mas também não são dos piores. Poderiam ser melhores se alguns dos males do pomar estivessem sanados. Não posso ficar satisfeito com a notícia de que as novas unidades hospitalares ou de suporte aos hospitais, como os laboratórios, beneficiam de equipamentos com tecnologia de ponta quando temos tanta carência de equipamentos sem ser de ponta em todo o território nacional, o que faz com que outras doenças continuem a matar angolanos em número considerável e inaceitável. Não posso ficar satisfeito com a manutenção de medidas de gestão centralizadoras e concentradoras que só aumentam a nossa terrível burocracia e a consequente ineficácia. Não posso ainda ficar satisfeito com o modo como se comunica, pois uma melhor comunicação permitiria ganhos consideráveis, quer em termos de informação - continuamos a ver muitos exemplos confrangedores de má informação, como foi o caso das máscaras em todos os seus aspectos - mas também de debate ou discussão. Seguramente que as coisas estariam melhor e muitos erros poderiam ter sido evitados caso tivessem sido promovidos debates pluralistas e descomplexados a nível central e local com envolvimento de especialistas da saúde, da economia, da biologia, das ciências sociais, para além de políticos, empresários, zungueiras e outros cidadãos interessados. O problema da comunicação é transversal a quase todos os sectores da vida nacional, como se vê em muitos órgãos de comunicação social e com a chamada comunicação institucional, que nem sequer sabe tirar partido das realizações positivas do Executivo. A obsessão pela propaganda e pelo controlo da informação é um dos regressos indesejáveis de que falava aqui há três meses.

Tal como no caso da gestão da Covid-19, também no domínio da economia assistimos a esforços assinaláveis para se tentar melhorar a situação, pelo que não é justa a permanente posição de bota-abaixo da parte de quem deveria procurar ajudar mais. A redução das importações de alimentos em 30% no primeiro trimestre - quando a pandemia ainda não fazia sentir os seus efeitos - relativamente a igual período do ano anterior é o principal indicador a assinalar, e mostra que, afinal, não era difícil fazer o que tantos recomendavam. Outro é uma aparente maior atenção às micro e pequenas empresas de produção e de serviços, pois são as que podem responder aos desafios com os recursos de que dispomos, principalmente os humanos. Aparente porque ainda é cedo para avaliar até que ponto a vontade política agora demonstrada é verdadeira e definitiva, bem como se o nosso frágil aparelho administrativo pode assumir a resolução dos problemas dos empresários em vez de os complicar. Porque ainda é cedo para se perceber até que ponto será possível mudar a terrível burocracia que atrapalha a execução de boas decisões Porque ainda é cedo para perceber se o desempenho institucional dos departamentos ministeriais e dos órgãos de regulação vai melhorar e se haverá capacidade e possibilidade de resistir à pressão de interesses lesivos da economia nacional.

Tudo isto porque se é verdade que há novos sinais, também são aflitivos os sinais dos regressos indesejáveis e de continuidade de procedimentos nefastos. Não se percebe porque não se faz um trabalho mais profundo de auditoria à Sonangol, o epicentro da corrupção, que se meteu em tudo para facilitar a drenagem de dinheiros públicos para certos bolsos, como, tudo indica, aconteceu com os seguros e com o imobiliário. Valeria a pena, por exemplo, investigar o que se passou com tanto gasto em edifícios, condomínios e até "aldeias" de luxo, muitos abandonados e degradados. A Sonangol é um bom exemplo de que tem razão quem se opõe a projectos megalómanos que não são controláveis e permitem os desvios que conhecemos.

Voltarei ao assunto.

PS1 - A minha homenagem ao doutor Sílvio e todas as pessoas que têm sido vítimas de violência gratuita e que não mereceram cá as mesmas honras por parte de quem protestou contra a morte de George Floyd. A vida de angolano "doesn"t matter"?

PS2 - A homenagem ao Dr Strangway foi mais do que justa e deve ser saudada. Há outros médicos, professores, cientistas, historiadores, agrónomos e demais profissionais cujos nomes deveriam ser perpetuados pelo Estado angolano pela sua obra a favor dos angolanos.