Antes do dia marcado para as eleições em Angola, uma série de pessoas estava a preparar a opinião pública nacional e internacional (sobretudo a internacional) para a fraude que seriam essas eleições. Quais videntes, antecipavam uma vitória forjada do MPLA, com distúrbios generalizados nas assembleias de voto. E para isso, apelava-se ao desrespeito generalizado à lei e à ordem.

Um dos argumentos utilizados então eram sondagens forjadas, nas quais se prognosticava a grande derrota do partido que governa Angola desde 1975. O mesmo partido que manteve invioladas as fronteiras do país, que combateu o apartheid e que, mais tarde, tratou de acabar com a guerra, de modo a começarmos a caminhar rumo ao desenvolvimento, é preciso sublinhar.

O engraçado é que se chegou a forjar inclusivamente uma sondagem, que teria sido feita por uma empresa brasileira. Pois ia eu tendo acesso aos resultados, não de uma nem de duas, mas de várias sondagens feitas por essa mesma empresa brasileira (com um consórcio angolano, do qual não faço parte), que em nada se assemelhavam àqueles que foram forjados e amplamente difundidos. Mas como a intenção era retirar o MPLA do poder, os lobbies lusos garantiram a reprodução dessa desinformação pelo mundo. Para não variar, alguns jornais angolanos alinharam por esse habitual diapasão da desinformação.

Um outro argumento para justificar a fraude, é o de "não haver alternância de poder" em Angola. Trataremos aqui de elucidar este equívoco.

João Soares ao ataque

Num debate realizado na RTP no dia das eleições angolanas, o político português João Soares destilou uma vez mais a sua "raiva militante" contra o MPLA, não se importando (como lhe é habitual) de, com isso, continuar a ferir os angolanos.

Nada tenho contra esse político, apenas acho estranho quando alguém que não é angolano destila tanto ódio em relação a nós. Até admitiria isso, caso Portugal tivesse um dia sido colonizado por Angola - coisa que nunca ocorreu. Aliás, ocorreu foi o inverso. E, mesmo depois da descolonização, também a partir de Portugal se fomentou e se financiou uma guerra de longa duração, que mutilou a maioria das famílias angolanas. Lembro-me bem de declarações de então, de João Soares...

Não me causou estranheza que o argumento apresentado por esse político português, para antever a fraude eleitoral, foi que não é admissível que um mesmo partido político se mantenha no poder várias décadas, pois "uma das regras da democracia é a alternância".

Claro que uma afirmação como essa é gratuita, pois a dita regra (tal como foi enunciada) simplesmente não existe. Nem poderia existir, uma vez que o princípio basilar do sistema democrático é o exercício do poder pelo povo, que elege os seus representantes. A decisão popular expressa através do voto não poderia conviver com a dita regra (distorcida em função do interesse do autor da afirmação, tal como aliás se fez com a sondagem fabricada). Ou seja, não é possível, simultaneamente, haver decisão através do voto e ter de haver alternância. As duas coisas não coabitam, pois uma é a negação da outra.

Um dos presentes no debate esclareceu João Soares que, ao contrário do este afirmara, o caso angolano não é único deste género no mundo. João Soares acenou afirmativamente com a cabeça, facto que deixo sem qualquer comentário...

Mas ainda que o nosso fosse caso único no mundo, estaria errado só por ser caso único? Não, de maneira nenhuma!

O sistema democrático rege-se por princípios e, a partir do momento em que eles são respeitados, as coisas decorrem normalmente. E esses princípios não podem ser utilizados em função do interesse particular de cada um (pessoa ou partido político).

Desmistificando a questão da alternância

Vamos então desmistificar a questão da alternância de poder em sistemas democráticos.

Mas antes, vou esclarecer que esta dúvida não diz respeito a alguns políticos, apenas. Também na academia, já deparei com ela. Depois de uma aula num curso de doutoramento na Universidade de Brasília, dei uma conferência para os meus pares, durante a qual um colega me "acusou" de ter uma visão demasiado optimista para o caso angolano, visto não haver por cá alternância de poder. Segundo ele, só poderia haver optimismo se o MPLA saísse do poder. Bolas, que democracia então é essa, em que o voto de nada vale, mas vale apenas o interesse de dúzia e meia de pessoas, que querem tirar uns do poder ou querem colocar no poder os seus amigalhaços?

São pessoas que se dizem defensoras dos ideais democráticos, mas de facto querem fazer prevalecer, não os princípios e as regras do sistema democrático, mas os seus próprios interesses. Conhecemos vários defensores de ideais democráticos em sua casa, mas para distante de casa, qual democracia qual o quê.

O que quer, então, dizer o princípio da alternância de poder em sistemas democráticos?

Este princípio não estabelece a obrigatoriedade de alternância. Pois, se assim fosse, teria sido desnecessária a última eleição norte-americana, com a qual se despenderam muitos milhões de dólares. Seria automaticamente declarado vencedor, sem necessidade de recurso a um processo eleitoral longo, o candidato do Partido Republicano. E nas seguintes, seria o representante do Partido Democrático a governar. E ponto final. Mas não é isso que sucede, simplesmente porque a regra não estabelece qualquer obrigatoriedade de alternância.

O princípio da alternância de poder estabelece unicamente a possibilidade dessa alternância. Não a obrigatoriedade, mas a possibilidade. E esta é a única forma de coabitação entre esta regra e o princípio basilar da democracia, de eleição dos seus representantes por parte do povo. É o povo que detém o poder, pois é o povo que decide pela manutenção ou não de quem governa. Quem decide não é o político João Soares ou qualquer outro político português, militante deste ou daquele partido político angolano. Nem sou eu, nem é qualquer outro ser. É o povo. E é o povo do país envolvido, do qual João Soares (que eu saiba) até nem faz parte.

Portanto, deixai o povo decidir livremente. O povo angolano. Sem pressões a partir de estações televisivas europeias, da mesma forma como nós aqui não pressionamos quem quer que seja, quando há eleições em Portugal. Podemos ter (e temos) os nossos candidatos, os nossos preferidos. Mas nada de pretendermos impor quem quer que seja ao povo português, fabricando resultados de sondagens ou inventando regras que não existem.

O povo vota. O povo decide. E que sejam as instituições de direito (comissão eleitoral e tribunais) a deliberar acerca de eventuais reclamações dos partidos políticos, tal como sucede em qualquer sistema democrático.

Mas o básico é: a soberania reside no povo. No povo angolano, neste caso.

Texto publicado na edição 498 do Novo Jornal, de 1 de Setembro de 2017