À medida que o tempo passa e os anos galgam à nossa frente, torna-se, não diremos mais fácil, interpretar e compreender os principais sujeitos de um passado historicamente ainda fresco, mas que nos vai permitindo, com alguma distância e o manancial de documentos históricos, públicos e privados que vão chegando às nossas mãos, reter alguns dos aspectos fundamentais que estiveram na mente e na acção de alguns dos "Pais" da nossa independência.

Não pretendemos aqui - nem é o lugar indicado para isso - desenvolver uma tese ou apresentar um trabalho científico. Porém, e dada a crua realidade em que vivemos, feita de modas vazias, espíritos pouco esclarecidos, um desconhecimento generalizado no que diz respeito a ideologias e à cultura do seu estudo, do seu conhecimento e o mais despudorado à-vontade e descaramento em abordar qualquer tema sem o seu domínio no mínimo razoável, não podíamos, sob pena de não ficarmos bem com a nossa própria consciência, deixar passar esta data em branco.

Admitamos, por mais que nos custe, que hoje em dia já pouco sobra dos sonhos e das ânsias que deram origem ao início das lutas política, cívica, cultural, e depois militar, que terminaram com a ascensão à independência a 11 de Novembro de 1975. O tempo que nos calhou viver, a dada altura, tornou-se numa imensa confusão propositadamente criada para que a verdade histórica se confundisse com efabulações importantes para alguns em determinados momentos que originaram uma crença quase cega e pouco propensa à discussão e ao debate. Aprenderam rapidamente a esquecer-se, de forma sistemática e propositada, que qualquer análise que passe por formular juízos de valor a propósito das gerações nascidas do início do séc. XX até aos anos 40 - que estiveram afinal no núcleo central da luta em Angola - tem de ser percepcionada no seu tempo, na sua época, enquanto resultado de um tempo histórico que tem de ser estudado, investigado, entendido e aprofundado em toda a sua dimensão e não na perspectiva individual que cada um possa ter, em função das suas escolhas, opções e objectivos.

Deste passado, quer o razoavelmente recente quer o mais distante, é bom lembrar - muito para além dos "estudiosos" que o não são, para além dos interesses quotidianos da baixa política, para além mesmo das divergências e querelas ideológicas - quem nos deixou exemplos raros de coerência, de modéstia, de patriotismo, em simultâneo com uma prática de vida que tantas vezes levou a que se prejudicassem a si próprios, em benefício do colectivo. Lúcio Lara é dos raros exemplos que ficaram de várias gerações quantas vezes em profunda discussão consigo próprias, que desbravaram um caminho de dificuldades sem fim com um objectivo: a independência real do seu país. Pondo de parte sonhos pessoais, projectos individuais, o aconchego familiar, até mesmo o bem-estar e a prosperidade em que podia viver, se tivesse sido outra a sua escolha. Manteve-se, ao contrário da esmagadora maioria dos seus companheiros, longe da atracção fácil do exercício do poder para benefício próprio, da manutenção do poder pelo poder, da fronteira ténue que separa quem serve o seu país e de quem dele se serve, utilizando para isso os próprios instrumentos que lhe foram legados pelos que deram o corpo ao manifesto, pelos que fizeram da sua (nossa) Terra mais importante sentido da sua vida.

Nestes tempos em que parece fácil e à mão de qualquer um saber tudo, em que se esquece com a mais absoluta facilidade o que se disse ontem, em que o património histórico e intelectual é desfeito em nome de interesses que começaram há muitos anos e cujos resultados estamos hoje amargamente a provar, fique escrito que este país tem uma História. Que, entre altos e baixos, entre a coragem desmedida e a cobardia sem fim, a mais inteira verdade e a mentira mais ignóbil, houve gente de coluna vertebral inteira. Como Lúcio Lara. Que não se colocou "a jeito", não traiu o seu legado, não desistiu quando alguns lhe quiseram apontar o dedo, nem nunca baixou a cabeça. Porque, conhecendo há muito os seres humanos, muito cedo compreendeu que a única escolha possível até ao fim era manter-se igual a si próprio: inteiro, coerente, cego, surdo e mudo ao luxo das alcatifas, ao chamado dos novos-ricos e à imbecilidade que pode levar um homem a acreditar que vale o mundo.