Concretamente, UNICEF significa Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Criança, pois foi num contexto de emergência pós-guerra que esta agência foi constituída, para responder aos desafios de sobrevivência das crianças afectadas pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Dada a sua natureza providencial a favor das crianças de todo o planeta, o escritório do UNICEF-Angola estava formatado na sua programação para acções de sobrevivência, protecção e desenvolvimento da infância angolana, numa parceria directa a actuante com o Governo de Angola.

Na fase da Guerra Civil, o sofrimento evidenciado pela experiência de vida das crianças em diferentes contextos urbanos e rurais exigiu que o UNICEF assessorasse e partilhasse com o Governo e as ONG ligadas à protecção da criança esforços dirigidos à implementação de programas repartidos por sectores: saúde e nutrição, água e saneamento, educação, protecção e direitos da criança e mobilização social.

Na fase mais aguda da guerra, em que Angola apresentava bolsas de populações desligadas do normal funcionamento das infra-estruturas e serviços sociais do Estado, o programa com maior envolvimento de recursos e importância geral era o programa de emergência, sediado nas zonas mais afectadas, que acoplava no seu seio todas as outras componentes acima referidas, mas com ênfase para a nutrição e saúde.

O meu trabalho, enquanto oficial nacional de comunicação e informação, consistia basicamente em divulgar as acções de emergência do UNICEF e do Governo e os seus resultados, tanto nos órgãos locais como nos media internacionais, sendo que a divulgação externa era feita via escritório central de Nova Iorque, nas línguas de trabalho da ONU. Era ainda responsável pelo discurso oficial da agência em Angola, embora não me coubesse o papel de porta-voz, sempre atribuído exclusivamente ao representante.

Angola de lés a lés

Uma das missões que desempenhei com paixão pelo jornalismo e muita exigência pessoal foi o apoio a equipas de jornalistas internacionais que vinham a Angola de visita às áreas mais afectadas pelo conflito, aos campos de deslocados ou a periferias urbanas, tanto de Luanda como do interior, com crianças bastante prejudicadas em termos de esperança de vida. O objectivo dessa cobertura era mostrar aos cidadãos dos países doadores imagens da situação da criança, a fim de sensibilizá-los para actos de solidariedade individual ou governamental. Todas essas missões tiveram retornos financeiros para o UNICEF-Angola. O meu domínio de três línguas de trabalho da ONU facilitou muito essas missões.

Um ano antes das primeiras eleições em Angola, fui mandado ao Huambo para fazer um artigo sobre os efeitos da seca no Sul do País. A cidade entrara em crise pré-eleitoral, os voos eram escassos e sempre abarrotados de passageiros temerosos do que poderia acontecer. Para regressar a Luanda, tive de correr pelo aeroporto dentro, chegar à escada de acesso de um Iliushin russo que se preparava para descolar com um tanque T3 e alguns soldados angolanos como carga. Falei com o piloto russo em inglês, mostrei o meu cartão do UNICEF e lá voei sentado junto do tanque de guerra e dos soldados. Ao levantar voo em espiral, o IL lançou alguns foguetes de prevenção contra possíveis ataques antiaéreos.

Em 2004, estive com dois jornalistas holandeses no Moxico, para cobrir o impacto das armas invisíveis e actuantes, mesmo depois do cessar-fogo: as minas antipessoais. Descobrimos no Lwena um menino de 12 anos que havia chutado uma mina, supondo tratar-se de uma lata. Estava bastante destroçado, mas não perdera nenhum membro. Estava no hospital local em tratamento, com a mãe que também sofrera ligeiras escoriações.

O repórter principal perguntou porque é que o rapaz tinha o rosto inchado e os olhos cheios de pus. A enfermeira respondeu que ainda não tinham feito o curativo, por ser domingo e que não havia penicilina no hospital. O holandês e eu fomos ao mercado local e comprámos as doses de penicilina injectável. Aproveitei para escrever uma reportagem que saiu na revista África Lusófona, editada em Lisboa. Com essa reportagem, concorri e ganhei o Prémio Jornalista Africano do Ano CNN 2005.

Mas também cobri cenários de resiliência das minorias étnicas (caso dos criadores de gado no Sul de Angola - Muhacahonas). Esta reportagem foi a peça mais bem ilustrada com fotos a preto e branco (ainda não usava máquina digital) e incluiu crenças e mitos daquele povo, a beberagem do gado feita uma vez por semana, por escassez de água e muito mais.

Outra vertente do meu trabalho repartia-se pela cobertura de projectos ligados à prevenção do VIH/SIDA junto da juventude, e para o efeito nunca me esqueço da visita que fiz a Cabinda a um programa local muito bem estruturado e com resultados palpáveis.

Igualmente realizei seminários em várias províncias sobre "A Criança como Fonte da Notícia", com tónica sobre a Convenção dos Direitos da Criança. Estas deslocações por todo o País foram a oportunidade soberana com que sempre sonhara de conhecer o meu País. Visitei províncias onde para tomar banho tinha apenas uma água cor de barro num tambor de metal, que me valeram grandes distúrbios gastro-intestinais de que até hoje me ressinto. Uma vez no Kuito, ainda no tempo da guerra, contraí malária e tive de ser socorrido por uma madre brasileira com um chá de flor de artemísia. Nas periferias do Huambo, percorri centenas de quilómetros em vias e estradas tão danificadas pelos tanques que o jipe nadava em ondas de areia tão fina como fuba. Em Malanje, saltitávamos sobre buracos a menos de 30 m por hora, sem poder sair do perímetro de circulação por causa das minas. Demorávamos duas horas para fazer 50 km.

Praticamente, os grandes dados e estórias com rosto humano lançadas nos relatórios do UNICEF sobre Angola, no período de 1990 a 2008, foram recolhidos pela minha pena, o meu gravador, a minha câmara fotográfica, mesmo que, depois, refixadas em inglês pela pena do meu chefe expatriado ou sintetizadas em Nova Iorque. Quer dizer, o meu nome nunca aparecia como o recolector de vozes do povo angolano nesses relatórios. Mas o que ganhei foi mais precioso: o conhecimento dos povos de Angola, o carinho de milhares de crianças maioritariamente do campo.

Nas terras por onde andei, vi muitas vítimas de minas. Uma vez encontrei no Bié um menino de 4 anos com o braço direito amputado, porque tinha ido apanhar ratos e meteu a mão no buraco de uma cobra. Em Luanda, publiquei no Correio da Semana, nos anos 90, uma grande reportagem sobre uma menina de 9 anos, chamada Russa, deslocada de Malanje, que se dedicava à prostituição com outras três meninas na Marginal. Valeu a pena. O INAC recolheu as meninas para o Lar Kuzola.

Formação

Para além dessa vertente redactorial, ganhei uma sólida e vasta formação tanto em jornalismo e comunicação social, quanto em técnicas de gestão e controlo de projectos. Esta é outra vantagem de se trabalhar para a ONU: a formação contínua. Dessa formação também beneficiaram jornalistas angolanos. Ernesto Bartolomeu (TPA) e Osvaldo Gonçalves (Jornal de Angola) foram comigo a Windhoek para um seminário sobre A Criança nos Média. Sónia António (TPA), Ana Maria Daio (RNA) e outros jornalistas de Luanda e do Namibe viajaram para Maputo e Joanesburgo, para formações similares. Beneficiei de um curso de um mês em Israel, sobre Comunicação em Zonas de Conflitos, patrocinado pela agência Mashav, que me marcou profundamente.

Para além dessa formação dirigida, ganhei, por via do próprio trabalho, um conhecimento sobre os Direitos da Criança e da Mulher que, para os meus estudos como jurista, me permitem agora elaborar alguns ensaios a saírem brevemente sobre questões cruciais como os direitos de personalidade, poder familiar e direito à filiação.

Não posso deixar de render uma sincera homenagem ao finado senegalês Doc Fall, um grande representante do UNICEF Angola nos anos 90, um homem com um sentido de gestão para África muito relevante, ao meu primeiro chefe de comunicação, o ganense Osei Kofi, ao Dr. Christian Voumar, estes em especial, embora reconheça que os outros também deram o seu contributo para a causa da criança angolana. Dos meus colegas angolanos, quero saudar Laurinda Santos, pelo seu carácter de mulher decidida, Celso Malavoloneke, pelo seu espírito independente e invulnerável aos ditames por vezes impositivos dos expatriados, Lídia Borba, pela sua humildade e esforço, o motorista Damião, que ia perdendo a vida para salvar o carro de transporte do pessoal das garras dos ladrões, Joana Cambonga, pela sua bondade extrema, e todos os que por aquela casa passaram e deixaram o limo do suor do seu trabalho.