A propósito da questão da CRA de 2010, os cientistas políticos, inclusive eu, continuam a preservar o sentido crítico de Nelson Pestana (Bonavena), segundo o qual a constituição é um "fato à medida do homem". Ou seja, a Constituição de 2010 outorgou excessivos poderes ao Presidente que acabam por afectar os checks and balances e a separação de poderes, condicionando, por conseguinte, a autonomia funcional e decisória do Parlamento angolano. Sobretudo para um Presidente cujo processo de eleição é questionável, matéria para um eventual segundo texto em que analisarei o "mito jurídico da eleição do Presidente à luz da CRA de 2010".

A respeito do debate radiofónico, ficou evidente que os cientistas políticos e os juristas angolanos navegam em rios separados. O que não constitui, de todo, uma novidade académica, na medida em que os cientistas políticos compreendem a Constituição a partir de um ensinamento do mestre de Ciência Política, Giovanni Sartori, segundo o qual há uma diferença entre a law in books e a law in action. Ou seja, a diferença entre a lei formal e a lei material. Assim, alguns cientistas políticos tendem, como eu, a analisar a Constituição material para aferir os efeitos de mecanização do sistema de governo, o nível de engenharia constitucional e a combinação institucional dos poderes dos órgãos políticos.

Devemos salientar que há dois cientistas políticos americanos da corrente neo-institucionalistas, Matthew Shugart e John Carey, que desenvolveram um método de mensuração dos poderes dos presidentes previstos nas Constituições, precisamente na obra Presidents and Assemblies: Constitutional Design and Electoral Dynamics de 1992. Por exemplo, sobre os poderes do Presidente previstos na CRA de 2010, é de destacar o trabalho de Gilberto Pereira que, adoptando o método de Shugart e Carey, acaba por concluir que se observou, efectivamente, um crescimento dos poderes do Presidente da Lei Constitucional de 1992 para a CRA de 2010.

Para tornar mais claro o assunto, proponho ao leitor que imaginemos, em conjunto, que vivemos numa cidade onde vigora uma norma que estatui que ninguém morre. Mas, por imperativo da vida, as pessoas continuaram a morrer. Posto isto, o cientista político irá preocupar-se em analisar os efeitos funcionais dessa norma que visa impedir a morte para aferir como esta afecta o comportamento das pessoas. Partindo deste exemplo, iremos agora entrar na análise da CRA de 2010, com base na visão crítica de Nelson Pestana. No artigo 129.º da CRA de 2010 prevê-se uma forma de destituição do Presidente da República, cabendo essa iniciativa à Assembleia Nacional. Agora, imaginemos que o acto de destituição, conforme previsto na CRA de 2010, foi iniciado pela Assembleia Nacional, bastaria, somente, o Presidente demitir-se, evocando o artigo 128.º, para derrubar a Assembleia Nacional, deixando essa de exercer o poder de destituição previsto na CRA de 2010.

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