Tudo isso se deve a um tempo perdido. A um tempo que se nos escapou das mãos porque muitos que tiveram a responsabilidade de tomar decisões o fizeram em prejuízo de uma vasta geração de cidadãos e cidadãs angolanas que hoje vivem muito mais apreensivas com o futuro do que com o próprio presente que já é de si mesmo um autêntico atentado ao vagar das nossas vidas.

Todos os dias o refrão passa de boca em boca, nos táxis, nas farmácias, onde se vai em busca do remédio para o corpo que padece de doenças que nem a própria alma tem sido capaz de nos ajudar a sarar. O refrão hoje não é um pezinho de um verso de um poema cantado, não! O refrão é uma conversa mantida entre aqueles que acreditaram mais no amanhã do que qualquer um daqueles que teve em mãos a responsabilidade de se chegar à frente de tudo e de todos e dar a comer e a beber as milhares de crianças que não chegam aos cinco anos de idade.

Estes dias que agora vão mais velozes, estes mesmos dias que ontem pareciam tão lentos em nós e tão fugazes como as balas que tracejavam os céus de Angola num período em que os horrores tomavam conta das nossas esperanças, estes mesmos dias que pareciam tão distantes de uma lembrança tétrica, parecem fazer-se à estrada com os passos das famílias que hoje se colocam à frente de uma montra de produtos de bens alimentares a ver com o olhar grave o preço dos produtos para calarem a fome que as corrói.

É digno que ainda tão recentemente, quando as bases de um sonho risonho estavam a ser lançadas, a lembrança que se expunha, mais do que se tinha, era a de que estavam os horizontes todos obstruídos por uma nuvem enorme que atravessava o olhar defronte para a vida, como se a nós dissesse que dali não nos poderíamos mais movimentar?!

É justo que sejam ainda estes mesmos dias aqueles que mais tenham de nos ensinar o sentido patriótico da vida? E que sejam as crianças a dar-nos lições de que elas não são apenas o futuro do amanhã, mas o presente de hoje que nos convoca a um instante de reflexão sobre os quão tenebrosos temos sido para connosco próprios?

De facto há dias assim em que um instante só não basta para que possamos olhar para o espelho e deixarmos de ver reflectida uma imagem deprimente que se ri de nós, porque não só nos falta e faltou a humildade de oferecermos o outro lado da face, como acreditamos que os objectivos têm de ser os do milénio, quando diariamente vemos sucumbir aos nossos pés tudo aquilo que connosco trazíamos antes de vermos os homens da nossa terra a traírem a sua causa.

Um dia, talvez nem seja um dia, talvez nem mesmo seja um momento, mas talvez um dia, se a voz que fez a causa angolana crer em nós vier ao nosso encontro, nos pegue pela mão e nos leve a passear entre a miséria que se espalha no país como cogumelos à solta. Talvez neste dia nem precisemos mais de olhar para o espelho porque até este se vai recusar de ter a nossa imagem reflectida nele.

Os dias também encerram em nós o dizer da dor, da impotência e da indignação que faz em nós morada e se traduz numa descrença que pensávamos morta em si. Há um nós em nós, há tu em nós, há um nosso em todos os haveres, há um grito em toda a revolta, há um gesto em cada omissão, um detalhe acrescido de emoção. Por mais que nos sejam eruditas as vozes que falam ao microfone em pública assembleia, há sempre um silêncio que nos cala a arrogância; há sempre um gesto que se sabe justo.

Por estes dias tudo parece um detalhe perdido por entre o preço de um "utensílio alimentar", porque dele se faz acordar a vida, porque nos sentimos que não somos vozes ouvidas pelo silêncio de quem não mais quis oferecer à voz os instantes que ainda nos restam para outorgar às famílias pela morte da moral e o ressuscitar da arrogância política. Há dias assim, e estes são os dias das nossas vidas. Talvez nem sempre o foram, ou talvez sempre o tivessem sido, ou talvez nunca mais o voltem a ser.