Lá vai o tempo em que perdíamos tempo com os estragos gerados pelo tempo da embriaguez petrolífera de uma liderança política egocêntrica, atrasada e subdesenvolvida.

Mas, pode não ir tão longe o tempo em que o desperdício, a luxúria e a irracionalidade financeira preenchiam "as ordens de saque" dos ocupantes da primeira classe do nosso Ministério da Corrupção.

Pode não ir tão longe o tempo em que nos "deliciávamos" com as extravagâncias promovidas por aqueles que, agora, "exilados" em casa, estão aflitos por não poderem continuar a viver rodeados por todos os lados por um exército de servos "entalados entre o assistente, o mordomo e a governanta".

Pode não ir tão longe o tempo em que senhoras de salto alto, possuindo em casa "armários espelhados do tamanho de um T4 do subúrbio", se revelam agora diminuídas por serem obrigadas a dedicarem-se aos afazeres domésticos que, no passado, eram despejados sobre a legião de criadas asiáticas que eram acorrentadas em casa em regime de quarentena esclavagista, aqui instituído muito antes da chegada da pandemia do Coronavírus...

Pode não ir tão longe o tempo em que gente snobe, desabituada a ter uma vida normal, está agora confrontada com a chatice de ter de suportar as bichas que, por causa da Covid-19, passaram a formar-se diante dos supermercados...

Pode não ir tão longe o tempo em que, como dizia o meu amigo Amável Fernandes, perdíamos tempo a olhar para a riqueza de gente que passou a vida a respirar o vício, o crime e o desprezo pelo "Outro" sem precisar de ventiladores...

E não vai longe o tempo em que, agora, atormentado por uma pose verbal desajeitada, um Ministro de Estado, sem saber o que se passa dentro das pessoas e quando dele se esperava que estivesse contaminado com a solidariedade social, se apresenta à plateia a confundir "almoços preparados por chefes privados com uma estrela Michelin", com arrotos de cabuenha seca expostos à desesperada disputa da "tribo dos bárbaros" que, afinal, o nosso Comissário Político não sabia que não "teve tempo suficiente para fazer as suas reservas"...

Presente está também agora o tempo em que, um Ministro da Polícia, chama para a si a distribuição de "rebuçados e chocolates" à corporação, empunhando e transformando o medo do vírus no "salvo-conduto" para a linguagem embrutecida, o disparate e a ofensa moral contra aqueles que, tolhidos pela miséria mas respeitando a autoridade, pretendem apenas ser tratados com decência e dignidade e não "acorrentados por guarnições à ordem"...

Vivemos ainda o tempo em que, "afogados pelo sentimento de angústia, pela incerteza e pela incapacidade de antecipar o que pode vir a acontecer aos nossos dias", estamos já a ser açambarcados pelo défice de conhecimentos, pela falta de bom senso, pela vaidade, pela teimosia e por grupos de interesse, que se preparam para passar por cima dos cadáveres que aí vêm, não se importando de desfilar, à custa desta hora trágica, o seu esquizofrénico talento para o negócio e o roubo e a sua mórbida voracidade para o lucro e a festa...

Chegados aqui, nada mais nos resta senão mudarmos. Mas, mudarmos porquê e mudar para quê?

Mudar para recuperar um tempo que, subjugado por forçada solidão, talvez nos forneça como terapia a leitura soletrada de "A Peste" de Albert Camus, para termos a noção da dimensão do cenário apocalíptico que se pode vir a abater sobre a (con)gestão de uma cidade que se vai apresentando "silenciosamente" como um "território" cada vez mais desconhecido pelos seus governantes.

Mudar para não voltarmos a ser sucumbidos pela deriva política que, no passado, se apoderou de quem, triunfalista, ousou confundir prosperidade social com a exposição planetária dos nossos pés de barro.

Mudar para que os cintos da fome, desfeitos pelo olhar desdenhoso de poderes públicos manietados pela cerca sanitária, não produzam, em série, novas vítimas de descabida austeridade contra as migalhas da sobrevivência de gente descamisada.

Mudar para não sermos obrigados a convocar, para a urgência dos cuidados intensivos, o sistema de ensino, da base ao topo, colocado à mercê de leilões de certificados de habilitações que, ao fim de licenciaturas fraudulentas tiradas em série de universidades sem laboratórios, em desonra da classe, não podem agora senão brindar-nos com médicos que confundem vírus com bactéria...

Mudar para que, depois de ter assistido à "brilhante" dissertação proferida pela Bastonária da Ordem dos Médicos na TV Zimbo, um respeitado médico jubilado do Hospital de S. António, na cidade do Porto, não volte a concluir que, afinal, estava diante de uma cantora lírica do Teatro La Scala e não de uma médica...

Mudar para não sermos obrigados a ver o recurso infecto à arrogância legitimar a autoridade policial para além do aceitável, num ambiente que, requerendo ânimo e serenidade, não pode ceder às tentações de um populismo incendiário contra quem, vítima de assombrosas desigualdades e sobrevivendo em espaços anestesiados de crescente empobrecimento, sabe muito bem distinguir as pessoas de bem das pessoas com bem...

Mudar para não nos sentirmos impulsionados a avaliar a capacidade de gestão governamental pelo número de marinas espalhadas à volta de uma cidadela ministerial, que mesmo congelada, não estava, seguramente, destinada a satisfazer as necessidades básicas de gente sem asfalto que, a prazo, pode estar condenada a continuar a transportar para a casa a água em bidões nas carruagens do próximo Metro de Superfície...

Mudar para que a prevenção passe rapidamente pela visão, dinâmica de acção, prevenção e envolvimento das Forças Armadas em campanhas de limpeza e de desinfestação das cidades e de apoio logístico às populações civis para enfrentarem uma "peste" que não distingue governantes de governados, patrões de empregados, pretos de brancos, umbundus de quimbundus ou ricos de pobres...

Mudar para abandonar velhos sectarismos e vaidades de plasticina para, diante do avanço da pandemia, levarmos à urgência a convocatória da comunidade de médicos, investigadores, professores universitários e outros especialistas com rodagem no exercício da medicina civil e militar até agora marginalizada, para integrar uma "comissão ad-hoc" de assessoria à Comissão Nacional Interministerial para a Prevenção e Combate à COVID-19, para trabalhar junto do Presidente da República.

Mudar sem olhar com preconceito ou inveja para o dinheiro dos ricos, que, diante dos ventiladores, agora não vale mais do que a dignidade dos pobres.

Mudar sem recurso a novos esquadrões de oportunistas cadastrados, que se preparam para lançar um olhar pretensamente repulsivo sobre a pobreza da maioria, para tentar promover o extermínio da riqueza de uns, para, em substituição, engordar a riqueza das novas castas dominantes em emergência.

Mudar interiorizando a ideia de que rejeitar a ajuda de gente com posses seria tão suicidário para a nossa sociedade como pretender voltar a nivelar por baixo a sua massa crítica.

Mudar porque o que está em causa não é a militância partidária, nem a lealdade canina a líderes políticos, mas a competência, o bom senso e a visão de conjunto de pensadores com matizes diferenciadas.

Mudar porque o que está em causa não é a mudança da roupa do manequim na montra nem a substituição completa do guarda-fato.

Mudar porque tenho medo da falência da higiene interior, do triunfo do desemprego, do desperdício do saber, da abundância de arrogância e do espírito de auto-suficiência, do sucesso do impulso, da vitória da desconfiança, do apego à teimosia, da ausência de diálogo e de consensos articulados e da oferta de descoordenação institucional.

Estando em causa a nossa sobrevivência, não podemos mudar por mudar. Não podemos continuar a fazer mudanças de cosmética. Não podemos, por isso, esperar por mudanças quando assistimos à manutenção, no Governo, de subestruturas que, sobrepondo-se entre si, continuarão a gerar despesas apenas iludidas pela redução do seu tamanho.

Não podemos esperar que, transformando o Executivo num laboratório de ensaio juvenil frequentado por técnicos saídos das universidades sem o amparo do saber e da endurance de quadros mais experientes, venhamos a ter garantida uma mudança governativa assente em eficiência, visão, comprometimento e capacidade.

Temos de mudar a sério. Mudar alargando o espaço de diálogo. Mudar encerrando o cemitério da intriga, do compadrio, do clientelismo e do culto de personalidade. Mudar sepultando a circulação do pensamento único.

Mudar alargando o espaço da crítica aberta e frontal. Mudar alargando o espaço do direito à repulsa e à mediocridade institucional. Mudar, sobretudo, a cabeça.