Nos EUA, cresci numa vila, ou o que é chamado de subúrbio. Os subúrbios nos EUA constituem vilas fora de cidade, no meu caso, a cidade de Chicago. Os subúrbios americanos estão associados ao sonho americano e ao crescimento do pós-Segunda Guerra Mundial. O sonho de subir socialmente na vida, de ser dono de uma casa própria e uma casa que constitui a base da riqueza intergeracional. Isso foi um sistema que funcionou muito bem para a população branca (descendentes de imigrantes europeus) e visto como alavanca para o crescimento da classe média.

Não serviu bem a população afro-americana que sofreu de leis e políticas racistas, desenhadas para impedir o seu acesso à educação, emprego e ao crédito necessário para comprar e manter propriedade. Mas, a espacialização de cidades americanas começou ainda mais cedo com novas regras na segunda parte do século XIX e com as mudanças da industrialização, um período em que nem os imigrantes irlandeses, italianos e gregos contavam completamente como brancos (na linguagem do império português, seriam considerados brancos de segunda).

Dizem que, em 1890, todos os distritos do estado de Illinois (onde Chicago está situado), e quase todos os distritos nos EUA, em geral, tinham populações multiculturais. A segregação foi-se criando especialmente durante as décadas iniciais do século XX e concentrando-se depois dos anos 50. Assim, em 1980, a vila onde morei tinha uma população de nove mil pessoas, e não me lembro de uma família ou indivíduo negro como residente. Hoje em dia, para uma população de 10 mil no mesmo lugar, 1% de população identifica-se como afro-americano.

Apesar do facto de não ter convivência com pessoas negras no dia-a-dia (nas escolas, nas lojas, nos parques, no sítio de trabalho), os meus colegas da escola eram racistas, muito racistas. Na minha casa, na minha família, tive uma educação anti-racista e não entendia o racismo da sociedade. Quando os meus colegas contavam piadas racistas ou usavam linguagem racista, eu ficava ofendida, criticava-os e, nisso, tornei-me depois o alvo das piadas. Com o tempo, e estudando na escola, percebi que o racismo deles e o racismo no meu país tinham, directamente, a ver com a história da venda das pessoas de África nas Américas - o comércio transatlântico das pessoas escravizadas.

O racismo nos EUA. que vi no fim do século XX, era resultado da história que ligou o continente africano e os Estados Unidos com muitos outros países nas Américas. Graças ao trabalho de historiadores associados com o Transatlantic Slave Trade Database, sabemos comprovadamente do papel dos comerciantes portugueses e brasileiros, acentuado nas populações da África Central e do Oeste, particularmente no território que hoje constitui Angola.

Tudo isso pode parecer ou dizer pouco, da referência inicial a Ronald Reagan, mas já lá chegamos. A ligação começa directamente quando entrei na faculdade, em 1986, e por ter frequentado uma faculdade em Washington D.C., a capital dos Estados Unidos. O presidente do país na altura era Reagan. No ano anterior à minha entrada na faculdade, aconteceram muitas manifestações em campos universitários norte-americanos contra o sistema do apartheid. Em particular, os estudantes exigiram que as universidades se cancelassem todos seus investimentos na África do Sul racista. Já na escola secundária, eu observava com atenção a luta contra o apartheid e as intervenções do regime do Reagan em várias partes do mundo, mas principalmente nas Caraíbas (lembro-me muito bem da famosa invasão de Granada) e outras actividades na América Central. Preocupava-me com tudo isso, enquanto cidadã do meu país.

Costumo dizer que a governação de Ronald Reagan foi o que me impediu de perseguir a formação em Estudos Medievais (a minha concentração na faculdade era a literatura e adorava ler Geoffrey Chaucer). Na faculdade, em Washington, naqueles anos, comecei a entender o poder imperial do meu país perante o resto do mundo.

Mesmo seguindo os meus estudos em literatura, tive várias cadeiras de história: história dos EUA. e história de África e das Caraíbas. Aprendi que a história dos EUA, que contavam na escola secundária e que era popularizada nos nossos monumentos e as datas comemorativas, bem como a razão dos feriados nacionais, não era bem contada.

E fiquei cada vez mais preocupada com o papel agressivo do meu país na sua forma de fazer política internacional. Nas manifestações públicas que assistia contra a intervenção na América Central e nas reuniões em que participei, aprendi que, para além do apoio dado ao apartheid no continente africano, o regime do Reagan interferiu na guerra civil de Angola, apoiando a UNITA contra o Governo legítimo da República Popular de Angola. E foi assim que Angola entrou imediatamente na minha mente.

Estudando a história de África e de Angola, como estudante de pós-graduação, e nos últimos 16 anos como professora universitária, vejo ainda muitíssimas ligações comuns entres as trajectórias históricas entre o país onde nasci e Angola. E vejo cada vez mais como a linguagem de colonizador se aplica à história real dos EUA, tanto quanto dentro do país do que na sua política externa.

* Marissa J. Moorman é Professora de História de África na Indiana University. É autora de Intonations: a Social History of Music and Nation in Luanda, Angola, 1945-Recent Times (2008) e Powerful Frequencies: Radio, State Power, and the Cold War in Angola, 1931-2002 (2019).