Passamos a não ter um governo de facto. Há, sim, nos termos da Constituição, um titular do poder executivo e os ministros que passaram a ser meros auxiliares desse mesmo titular, diga-se, sem qualquer responsabilização pelas acções que realizam enquanto "responsáveis" dos vários departamentos ministeriais que o poder executivo decidiu criar para a materialização da acção administrativa do Estado e cumprir o programa sufragado nas eleições.

Por via dessa alteração de fundo à Constituição, passamos a ter um grave problema no país: ninguém pode ser responsabilizado por nada, na medida em que o poder que poderia fazê-lo demitiu-se dessas funções.

Apenas o próprio titular do poder executivo pode, mas, igualmente, por via da Constituição, está "blindado" por "não (ser) responsável pelos actos praticados no exercício das suas funções, salvo em caso de suborno, traição à Pátria e prática de crimes definidos pela presente Constituição como imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia".

Entendemos hoje que esta articulação se deve, em parte, a uma manobra engenhosamente urdida pelo actual regime, no intuito de anular qualquer pressão que viesse a ter, quer da parte das forças políticas da oposição, como da sociedade civil organizada, quer de uma certa esfera social que por via de uma disposição constitucional quisesse reivindicar.

Aliás, daí não ser possível verem-se manifestações ou serem vistas como uma afronta ao poder legalmente constituído, ou ainda o exemplo mais recente de vermos sindicalistas presos pela polícia - imaginem só! - pelo simples direito que lhes confere a Constituição e etc., etc.

Esta manobra de retirar a pressão ao executivo por intermédio de uma "artimanha legal" empobreceu o debate político e voltou a atirar o país para a lógica reducionista do "pró" e do "contra" em função da cor partidária e não em função dos seus interesses.

Esta mesma manobra criou inúmeras barreiras à acção fiscalizadora ao exercício do poder executivo, até porque neste momento esta não existe; reforçou uma certa hegemonia virtual do partido do poder, tornou confuso o sistema de governação, estrangulou a Assembleia Nacional, que neste momento não tem qualquer poder efectivo, na medida em que a própria maioria parlamentar se anulou a si própria, e, por último, arregimentou uma velha ideia da politização excessiva do Estado.

Por conseguinte, em todo o debate que se tem promovido ao nível dos órgãos de comunicação com algum contraditório, vêem-se claramente duas alas bem diferenciadas: a que defende com unhas e dentes, e a qualquer custo, as acções (?) - seria melhor a imagem - do executivo e a que contesta o poder instituído sempre na tónica do "deitar abaixo".

Há ainda uma terceira ala: composta por aqueles que querem dar nas vistas por compreenderem a priori que o seu capital intelectual lhes pode ser útil para atingir determinado cargo numa instituição do Estado.

Como já tem acontecido ouvirmos um comentador de serviço e no dia "seguinte" assistirmos à sua indicação para um cargo no Estado. Faz-se escola.

São raríssimos os debates em que os comentadores vão com ideias próprias e as expõem ao país como forma de ver ultrapassado todo o marasmo institucional em que se encontra Angola.

As ideias que poderiam resultar de uma análise de facto sobre um determinado problema entorpeçam num sentimento que deixa dividido o comentador: "devo dizer o que é efectivamente real ou dizer o que convém aos governantes"? Normalmente, opta-se pela segunda opção, porque é chique e porque se fica bem na fotografia.

A continuarmos assim, não há progresso que vá experimentar o país do ponto de vista do debate político, ou haverá, mas sempre no sentido de continuarmos a correr atrás do prejuízo, como acontece agora com esta situação económico-financeira em que não se percebe muito bem como foi possível chegar a tão fundo do poço.

Os especialistas continuam a dizer que a culpa é dos factores externos à governação. Ou seja, os especialistas reproduzem o que diz o executivo. Ainda não nos propusemos a analisar os números anteriores a 2014, antes da crise. O que se produziu como riqueza, o que se gastou, como se gastou, quem gastou, etc., etc., e fazemos ouvido manco e olhos cegos para tudo isso.

Um remédio santo tem sido até aqui jogar as culpas para uma suposta "oposição fraca". A questão seria: nenhuma oposição em parte alguma do mundo sobreviveria com a Constituição que temos, porque nem mesmo os intérpretes do Direito têm sabido dar explicações ao país.

Ouve-se falar de um sistema presidencialista-parlamentar. Assim à vista desarmada, nota-se-lhe bem o contra-senso, na medida em que temos um titular do poder executivo com poderes absolutistas e um Parlamento sem poder nenhum.

Para se ter um sistema presidencialista-parlamentar, como lhe chamam, tinha de haver, em primeira instância, uma espécie de correlação de forças entre os dois poderes, até para justificar a justaposição de cada um dos poderes.

Não se pode ser um sistema presidencialista-parlamentar com um órgão de soberania a engolir o outro. Na verdade, o que esta Constituição trouxe ao país foi uma nebulosidade acrescida de um jogo político-partidário que se fechou em si mesmo. Que decide como jogar, com quem jogar, em que altura jogar, porquê jogar e com que meios jogar.

Se assim não fosse, nunca o MAT haveria de ser o órgão a conduzir o registo eleitoral e ter os dois titulares a conduzirem um processo em que eles são os jogadores. E sendo a CNE um órgão eminentemente constituído numa lógica político-partidária, custa-nos acreditar que haja alguma decência nisso!