Nesta missiva endereçada ao Presidente da República a partir de Lisboa, Portugal, e citada pela Lusa, os sobreviventes da alegada tentativa de golpe de estado liderada por Nito Alves, a 27 de Maio de 1977, tecem elogios a João Lourenço pela abertura manifestada sobre este que é o mais doloroso capítulo da história de Angola desde a sua independência, sublinhando a importância de o país se reconciliar com a sua história.

"A sua chegada ao poder reanimou a esperança perdida, depois de o ouvirmos manifestar a necessidade de uma reconciliação com a História", dizem os sobreviventes do 27 de Maio na carta aberta.

Esta é a primeira carta dos sobreviventes da mortandade a que Angola assistiu em 1977, no contexto de uma alegada intentona, liderada por Nito Alves, ex-ministro do Interior do Governo de Agostinho Neto, entre 1975 e 1976, e um dos dirigentes de topo do MPLA, que ficou conhecido por um movimento de "fraccionistas".

A anterior missiva, então dirigida ao ex-Presidente José Eduardo dos Santos, a 17 de Maio do ano passado, tinha como mote um pedido de clarificação do que ainda estava e está escondido nos buracos da história de Angola, com recurso, por exemplo, a exames de ADN, para serem identificadas as vítimas da repressão do Estado e, assim, possibilitar a emissão de certidões de óbito.

Nessa missiva, cujo primeiro signatário era João Ernesto Valles Van Dunem, filho de Sita Valles e de José Van Dunem, professor universitário, e que era bebe de meses quando os seus pais foram fuzilados, são apontados cinco pontos que estes consideram essenciais para concluir esta fase do processo: A constituição de uma lista com os desaparecidos do 27 de Maio; A realização de exames de ADN às ossadas das vítimas e a sua restituição às famílias para que lhes possam dar sepultura digna; A emissão de certidões de óbito e respectiva entrega às famílias, em conformidade com a declaração do Bureau Politico do MPLA datada de 26 de Maio de 2002; A criação em Luanda de um memorial de homenagem às vítimas; e o reconhecimento civil dos progenitores de todos os órfãos no seu bilhete de identidade.

Entretanto, nesta nova carta aberta, agora endereçada a João Lourenço, publicada num contexto de clara abertura do poder em Angola a esta melindrosa questão da história nacional, e quando o Presidente da República se prepara para uma visita de Estado a Portugal, entre quinta-feira e Sábado próximos, os sobreviventes lamentam nunca terem obtido quaisquer respostas às anteriores iniciativas.

"Há mais de 40 anos que temos vindo a apresentar, em uníssono com as suas famílias, junto das autoridades angolanas, em particular do ex-Presidente da República e do MPLA, José Eduardo dos Santos, aquilo que se pode considerar o mínimo dos mínimos de reposição de justiça na memória colectiva", dizem neste novo documento.

O mesmo onde os sobreviventes do 27 de Maio, nesta carta, que tem como primeiros cinco signatários José Reis, José Fuso, Jorge Fernandes, Jorge Marques "Big" e Egdar Valles, irmão de Sita Valles, avançam com uma ideia concreta para ultrapassar os obstáculos comummente aduzidos para impedir a concretização deste desígnio.

Para além de proporem um trabalho aturado com os que, estando ainda vivos, estiveram claramente do outro lado da barricada, com distintos protagonismos na forma como o poder lidou com o assunto, de forma a obterem informações sobre os detidos e desaparecidos, ao mesmo tempo que propõem que sejam consultados os arquivos das instituições que mais de perto lidaram com a repressão, como os antigos tribunais Militar e Popular Revolucionário, a "secreta" de então, da Direcção de Informação e Segurança de Angola (DISA) e do MPLA.

Como lembra a Lusa, uma das muitas versões exostentes sobre este episódio trágico da história de Angola pós-independência, a 27 de maio de 1977, uma alegada tentativa de golpe de Estado, numa operação aparentemente liderada por Nito Alves - ministro do Interior desde a independência (11 de novembro de 1975) até outubro de 1976 -, foi violentamente reprimida pelo regime do então Presidente angolano, Agostinho Neto.

Entre os 11 nomes dos responsáveis, divulgados então pelo Governo, estavam Nito Alves, José Van-Dúnem e a sua mulher Sita Valles, militante da União dos Estudantes Comunistas (UEC) em Portugal e que passou a militar no MPLA em meados de 1975. Os seus corpos, bem como os dos restantes, nunca foram entregues às famílias, nem emitidas certidões de óbito.

As tropas leais a Agostinho Neto, com o apoio de militares cubanos, acabaram por restabelecer a ordem e prenderam os revoltosos, seguindo-se, depois, o que ficou conhecido como "purga", com a eliminação das facções, tendo sido mortas cerca de 30 mil pessoas, na maior parte, sem qualquer ligação a Nito Alves, tal como afirma a Amnistia Internacional (AI) em vários relatórios sobre o assunto.

Assumir inédito das execuções sumárias

Como o NJOnline noticiou ontem, o Governo angolano, em declarações do ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, reconheceu, pela primeira vez, oficialmente, em mais de 40 anos, que foram cometidos graves excessos durante a tentativa de golpe de estado a 27 de Maio de 1977, onde foram mortos, detidos e desaparecerem milhares de pessoas.

Francisco Queiroz, aos microfones da RNA e citado também no Jornal de Angola, disse mesmo que, durante o decorrer daquele contexto histórico que ficou conhecido pelo 27 de Maio, ocorreram "prisões e execuções sumárias".

O governante sublinhou que esta realidade é importante ser lembrada para que não volte a acontecer, contrastando de forma nítida este posicionamento do ministro da Justiça e dos Direitos Humanos do Executivo de João Lourenço com a postura do anterior Governo sob o comando de José Eduardo dos Santos.

Sobre este período histórico angolano, Francisco Queiroz, em resposta a uma das mais persistentes questões relacionadas com o 27 de Maio, adiantou que vão ser criadas condições para que as famílias dos desaparecidos, presumivelmente executados e feitos desaparecer naquele contexto político-militar, possam resolver os problemas resultantes do facto de nunca terem obtido uma certidão de óbito válida legalmente.

Mas advertiu para a existência de dificuldades técnicas relacionadas com a identificação de restos mortais que tenham sido encontrados ou possam vir a ser encontrados nas valas comuns que se sabe existirem, ou, de todo impossível, nos casos onde não existe sequer corpo.