No que diz respeito às exigências de Angola para que o seu ex-Vice-presidente seja julgado nos tribunais angolanos, o encontro entre o Presidente angolano e António Costa revelou apenas mais do mesmo: Angola quer Manuel Vicente julgado nos tribunais nacionais e Portugal insiste na tecla da separação de poderes, cabendo pouco ou nada a fazer ao poder político.

Mas há um elemento que mostra estar a ser alterado neste confronto, tendo em conta as palavras do ministro das Relações Exteriores angolano, Manuel Augusto, e do seu homólogo português, Augusto Santos Silva, "velhos amigos" com "relações insubstituíveis", como se fossem "gémeos siameses": o ambiente está menos crispado ao nível dos corredores diplomáticos.

Basta, para o verificar, ter em conta as palavras de Manuel Augusto há menos de três semanas, quando dizia que Angola facilmente pode trocar o papel de Portugal nas suas trocas comerciais por outros países como Espanha ou África do Sul, sendo agora o discurso menos ameaçador e mais de molde a encaixar consensos entre os argumentos de Lisboa e as exigências de Luanda.

Logo após o encontro com o Presidente João Lourenço, o primeiro-ministro português disse, num tom ligeiramente de lamento, que os encontros ao mais alto nível entre os dois países estão fora de questão nas actuais condições em Lisboa ou Luanda, mas atirou, citado pela imprensa portuguesa, em jeito de quem crê numa solução para breve, que "não faltam locais no mundo" para os governantes dos dois países se encontrarem, como foi o caso de Davos e tinha sido recentemente o caso de Abidjan, Costa do Marfim, durante o encontro euro-africano.

Costa utilizou mesmo as palavras "fraternas" e "excelência" para caracterizar as relações entre os dois países, com apenas uma questão "irritante" que é o processo judicial que envolve o ex-Vice-presidente de Angola, que, pelo que se percebe das últimas afirmações de ambos os lados, apenas mantêm congeladas as visitas de alto nível.

"Este foi um encontro no quadro das relações permanentes que temos mantido - dos bons encontros que tenho mantido com o Presidente João Lourenço. Fizemos o ponto das relações muito fraternas que existem entre Portugal e Angola, que, felizmente, decorrem muito bem dos pontos de vista económico, das relações entre as nossas empresas, das relações culturais e entre os nossos povos", disse ainda Costa após o encontro com o PR angolano.

O PM português, que foi o único a prestar declarações aos jornalistas, tendo João Lourenço optado por não o fazer, referiu-se ao processo judicial que envolve Manuel Vicente no âmbito da operação "Fizz", onde está acusado de branqueamento de capitais e de corrupção activa, e cujo julgamento arrancou com a decisão de separar o seu processo do restante material judiciário, o primeiro passo que as autoridades angolanas esperavam ser dado como estando em curso uma eventual solução que não deixe ficar mal nenhuma das partes.

O chefe do Governo português está tão confiante numa solução e no ultrapassar deste imbróglio que, quando questionado pelos jornalistas sobre o resultado efectivo deste encontro como ferramenta para desbloquear o problema, respondeu que "uma imagem vale mais do que mil palavras".

"Felizmente, tudo o resto decorre com toda a normalidade na excelência das nossas relações. Sempre que me encontro com o Presidente João Lourenço encontramo-nos como bons amigos", notou Costa.

António Costa acrescentou, sublinhando que no entender do Governo português a questão do sítio onde os encontros ao mais alto nível têm lugar surge como o único entrave ao restabelecimento completo da normalidade nas relações entre Lisboa e Luanda: "Vamos aguardar serenamente que as decisões que as autoridades judiciárias têm de tomar sejam tomadas. Um dia, seguramente, poderei encontrar o Presidente João Lourenço ou em Luanda ou em Lisboa. Enquanto não nos encontramos em Lisboa ou em Luanda, também não faltam lugares no mundo para nos encontramos - e as relações vão prosseguindo".

A análise angolana

Da parte angolana, João Lourenço delegou no seu ministro das Relações Exteriores (MIREX), Manuel Augusto, as declarações aos jornalistas sobre o encontro, tendo aproveitado o ensejo para se congratular com a decisão da Justiça portuguesa de separar o processo do ex-Vice-presidente angolano Manuel Vicente, dizendo que corresponde a um passo no sentido desejado pelas autoridades de Luanda.

"Angola nunca interrompeu o diálogo com Portugal", disse o governante angolano, acrescentando: "Todos desejamos que o problema venha a ser resolvido o mais breve possível, para que a harmonia que tem caracterizado as nossas relações possa ser retomada. Nós, hoje, tivemos a oportunidade de trocar algumas ideias com o primeiro-ministro português e não fugimos à questão que a todos incomoda".

Manuel Augusto só soube da decisão do tribunal português em separar os processos já na Suíça, tendo, ainda a esse propósito, afirmando ter tomado nota da evolução do processo e mostrou "esperança" de que "a muito breve trecho (surja) um desfecho que corresponda à vontade dos dois governos, mas também dos povos angolano e português".

"Acreditamos (a separação do processo de Manuel Vicente) que se trata de um passo no sentido do desejo das autoridades angolanas e também das autoridades portuguesas. Não há razões para que este processo continue a ser uma sombra naquilo que são as relações harmoniosas e altamente desejadas pelos povos dos dois países", declarou o MIREX.

Portugal e Angola têm, disse Manuel Augusto, uma relação "forte, singular e única", palavras que demonstram claramente um baixar da crispação que caracterizou as suas palavras nas últimas semanas, embora sempre deixando uma porta aberta para que Lisboa e Luanda voltem aos trilhos normais.

Como pano de fundo a este puzzle em desconstrução estarão, muito provavelmente, as palavras do Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, que, em Luanda, durante a tomada de posse do seu homólogo João Lourenço, disse, em síntese, que aos governos compete encaminhar as relações entre países de acordo com o desejo dos seus povos e que os povos angolanos e português não querem outra coisa que não seja um relacionamento de amizade e harmonioso.

Recorde-se que o Presidente português recebeu há dias a primeira-dama angolana, Ana Dias Lourenço, em Lisboa, embora se tenha tratado de um encontro extra-agenda oficial e cujo conteúdo não tenha sido divulgado por nenhuma das partes.

Neste contexto, parece hoje claro que tanto Lisboa como Luanda estão desejosas de se verem livres do "irritante" caso judicial que envolve Manuel Vicente.

Sendo bem conhecidos os interesses portugueses em Angola, como sejam as centenas de empresas que trabalham no país ou exportam para Angola, bem como os milhares, 100 ou 150 mil, conforme as fontes, de portugueses que estão em Angola, os dados do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal mostram igualmente a importância que Portugal tem para Angola: pelo menos um em cada três vistos em passaporte emitidos pela rede consular portuguesa em 2017 foram para cidadãos angolanos, totalizando perto de 80.000 pessoas.

Turismo, estudo, visitas a familiares, negócios ou tratamento médico são os principais motivos para o pedido de visto para entrada em território português.