Começaria aqui por um dado interessante que descobri da trajectória de Diogo de Jesus: a sua passagem pela Academia Militar no Huambo, onde terá sido um dos melhores alunos do curso...

A partir daqui, é, de facto, verdadeiramente interessante. Ele teve uma das melhores classificações do curso. Depois fui buscar a caderneta dele e tenho-a comigo até hoje. Na altura, era determinado que aqueles que obtivessem uma certa nota no curso tinham acesso ao curso de oficiais.

Mas já neste curso, no Huambo, Diogo de Jesus influenciava, tentava influenciar os outros militares...

Com certeza absoluta.

Para a fuga, para a causa?

Com certeza absoluta. Posso até referenciar o tipo de acção que se fazia na altura. Entreajuda na caserna, criar espírito de solidariedade, de união e de coesão. Isso acaba coincidindo com os interesses da instituição. Mas havia paralelamente essa intenção e outra de mobilização.

O ingresso no serviço militar, no tempo colonial, tinha também este propósito: adquirir conhecimentos, adquirir certa disciplina, formação, para depois ir para a guerrilha. E isso joga com as orientações de 1963 do MPLA. É lamentável que o MPLA, às vezes, goste de o escamotear. Mas tenho a certeza e posso afirmá-lo.

O que é uma orientação do MPLA para eles ingressarem?

Era uma orientação para que parasse o movimento de dinâmica de todos quererem fugir para o Congo. É só a gente ler a documentação. Nessa altura, uma das dificuldades que existiam era essa, as tais críticas que faziam à direcção era essa. Houve, sim, orientação.

Orientação para que parassem as dinâmicas de fuga?

De fuga antes do serviço militar.

Diogo obedece a isso, faz o serviço militar...

...e empenha-se na difusão dessa cultura.

Diz que houve várias tentativas de Diogo antes de chegar a de 69. Queria que citasse mais um episódio.

Sim.

Diogo estava ligado ao processo de fuga do Edgar Saturnino de Oliveira, Pedro Hendrick Vaal Neto, e não nos admiremos que, nessa altura, este movimento não era um movimento de cunho partidário. Era um movimento dos jovens nacionalistas que pretendiam servir a causa. O movimento dependia, em parte, dos guias. Os guias eram, de um modo geral, pessoas do Norte, algumas delas com alguma vivência no Congo, como era o caso de Angelino Alberto, e, portanto, que não era do MPLA, nunca foi, foi da Ngwizaco da Ntobaku e do PDA, mas nunca foi do MPLA. Depois, a sua rota foi, de facto, desmantelada pela PIDE, na sequência dos episódios de 1961. O do Edgar Saturnino, era muita gente passava lá por casa, nestes encontros que considero itinerantes, algumas pessoas falam em células. Não acredito que essa seja a designação adequada.

Esses encontros tinham já um objectivo. Na documentação que temos, fala-se não só de encontros na vossa casa, como também na Ilha de Luanda.

Ah isso, isso já estamos em 69. No que estou a contar, estamos localizados em 1961/63.

Pedro Hendrick Vaal Neto, quando foge, vai à minha casa ao encontro do Diogo, mas não o encontra, e fala com a minha mãe na minha presença. "Dona Antónia, eu vim despedir-me, vou partir para uma excursão no Sudoeste africano". Quando foi inaugurado o Interparque, aqui no Golfo 2, dois dias ou três após a inauguração, vou para lá. Cruzo-me com Pedro Hendrick Vaal Neto, na altura em que eles tinham acabado de vir dos EUA. Fui saudá-lo e, assim em jeito de algum humor, perguntei-lhe se fazia ideia de quem eu fosse. E ele obviamente que não poderia fazer ideia. Não saberia. Eu tinha 10, 11 anos quando ele foi à minha casa e se despediu da minha mãe, na minha presença. Eu disse-lhe: "Eu lembro-me bem do dia em que esteve na minha casa, na Maianga, para se despedir da minha mãe. Eu sou irmão do Diogo". E ele virou-se para mim: "Procura por mim, vai à minha casa para falarmos, etc". Todavia, evitei ir ao encontro dele, visto que crescemos, acabámos contraindo alguns preconceitos. Não o procurei.

De 1963 para 1969, o período de preparação desta fuga, houve encontros entre Diogo e várias pessoas. Como é que deu conta dele? Alguma vez falaram sobre isso? Envolveu-o também?

Também sei que isso foi posto em dúvida. Vou-lhe dizer que estava, sim, envolvido e vou-lhe explicar o porquê.

Estava envolvido até que ponto? Qual era o seu papel?

Vou explicar já a seguir. Primeira coisa: meia dúzia de pessoas não se reúne numa casa, para fazer uma reunião clandestina nas nossas casas, com becos, etc., casas de madeira - sem ter ninguém que nos apoie, sem ter nenhum apoio. Isso não se concebe. Nesse dia, a partir do momento em que ele se está a preparar para a fuga, faço uma retrospectiva. Ele começa a permitir que eu apareça, dê o rosto aos outros. Nem na célula da Ilha eu dava o rosto. Eu era um back dele, produzia trabalhos para a rede clandestina, mas não me era permitido dar o rosto aos outros camaradas.

Era uma forma de o proteger?

Era, sim, uma forma de proteger, bem como a própria organização.

Uma forma que Diogo tinha para o proteger?

Tinha de ter, pela nossa diferença de idades, pela autoridade que ele tinha sobre mim.

Era muito rígido consigo?

Era, e mais adiante também vou espelhar isso.

Esse processo de preparação, até chegarmos ao 4 de Junho de 1969, com quantos meses de antecedência eles foram preparando isso? As reuniões, essas coisas, e porquê também a escolha da própria data. Havia uma razão?

Não tenho nenhuma referência sobre o porquê da data, a escolha da data. O que é um facto é o seguinte: eu colaborava com ele. Ele era a pessoa em cuja atrás eu me posicionava e fazia trabalhos para a rede clandestina. E vou-lhe dizer o que é que eu fazia: recolha de informação, de um jornal, salvo erro, O Comércio, que, na altura, produzia informações sobre a balança comercial da província. Como se sabe, isso era um tema relevante. Eu fazia reprodução de fita magnética para papel de noticiários da Angola Combatente. Eu fazia vigilância dessa tal reunião, que a documentação fala de Abril de 1969, eu fiz a vigilância dessa reunião. Até, se calhar, o termo adequado é mesmo segurança. Também fazia a recolha dos comunicados do Comando-Chefe das Forças Armadas em Angola.

Tinha 19 anos na altura?

Sim. Isso foi em Abril. Tinha 18. Eu faço 19 em Agosto.

Eu não conhecia todas as pessoas, apenas algumas delas

Pode citar alguns nomes, por exemplo?

Vou citar todos. Nessa reunião, participou o Cosme de Sousa Neto, o Diogo de Jesus e o Eduardo Santana Valentim.

Eduardo Valentim, Juca?

Sim. Justino Pinto de Andrade, Tito Armando dos Santos "Calhandro" e Vicente Pinto de Andrade. Foram esses.

Essa reunião foi em Abril de 1969, na vossa casa?

A reunião ocorreu na nossa casa, na Ilha. O meu papel nesta reunião foi garantir a segurança deles, ponto um. Ponto dois, inclusivamente, fui buscar duas personagens à paragem de autocarro. A abordagem foi feita através de códigos, porque eu não os conhecia. Uma delas está viva e, certamente, se lembrará disso, porque eu e ele depois ficámos presos na mesma cela, e então aí, sim, tive mais informações daquilo que se tinha passado na reunião.

Quem é essa pessoa?

Trata-se de Tito Armando dos Santos Calhandro. Fui buscá-lo à paragem. O plano estava traçado assim: eles deveriam desembarcar na paragem do Comando Naval de Angola, da Base Naval. A nossa casa ficava na zona do Marítimo. Haviam definido as horas. Naquele tempo, os horários dos autocarros eram rigorosos, e quem morava em sítios como esses tinha o domínio [dos horários]. Eu saio da minha casa para ir apanhá-los. Encontrámo-nos no intervalo, mais ou menos na zona da Sorefame, e havia um código de abordagem.

Qual era, nesse caso, o código?

Eram dois indivíduos, um deles baixo e claro, outro alto, escuro; um de óculos, ambos com toalha ao pescoço, um deles com um cigarro apagado na boca. Eu fazia a abordagem, levei uma caixa de fósforos para fazer a abordagem, no sentido de lhe oferecer lume. E a conversa dele iria iniciar-se perguntando-me se conhecia fulano e que queriam ir a casa [dele]. A partir desse momento, estava claro que eram as pessoas que eu ia buscar e ia levá-las para casa.

E, na vossa casa, chegou a ouvir o que se discutiu?

Não, não.

Nem o Diogo, mais tarde, falou consigo?

Não, não.

Afinal de contas, estávamos a pouco tempo, a menos de dois meses para a fuga...

Não, não, não, não. Isso eram regras próprias da actividade do serviço clandestino. Não.

Tinha certo nível, tinha nível de comportamento...

Níveis de hierarquia, níveis de comportamento e uma disciplina do tipo militar.

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