No dia 16 deste mês rebentava mais uma "mina" no terreno acidentado em que, nos últimos anos, se movem as relações diplomáticas entre Portugal e Angola, com a acusação, por parte do Ministério Público (MP) português, de corrupção activa e branqueamento de capitais ao Vice-presidente de Angola, Manuel Vicente.

No dia 21, a visita da ministra da Justiça portuguesa, Francisca Van-Dúnem a Angola foi adiada sem justificação, depois de ter sido anunciada com pompa e circunstância, até porque se tratava do regresso ao país de origem da governante portuguesa.

Mas a explicação não tardaria e dois dias depois, a 24, chegaria na forma de um comunicado de imprensa do Ministério das Relações Exteriores (MIREX), que reage à acusação produzida pelo MP português, tendo o cuidado de se cingir ao tratamento noticioso dado ao assunto, sublinhando que as autoridades angolanas ficaram a saber das imputações feitas ao Vice-presidente angolano através dos meios de comunicação social.

Mas o MIREX não deixa de fazer uso de termos fortes para deixar claro o descontentamento de Luanda face ao que aconteceu, considerando estar-se perante um "sério ataque à República de Angola, susceptível de perturbar as relações existentes entre os dois Estados".

O comunicado de imprensa do MIREX diz ainda que existe um aproveitamento da situação "por forças interessadas em perturbar ou mesmo destruir as relações amistosas existentes entre os dois Estados", recorrendo, para isso, a esta acusação do MP em Lisboa, envolvendo, para além de Manuel Vicente, o procurador português Orlando Figueira, que é acusado de ter recebido mais de 700 mil euros para fechar o processo.

As relações entre Lisboa e Luanda têm sido de altos e baixos, com alguns picos de extremismo, como aconteceu em 2013, quando o Presidente José Eduardo dos Santos anunciou o fim da parceria estratégica com Portugal, num contexto em que também estava nas capas dos jornais a questão da abertura de inquéritos pela Procuradoria-Geral da República portuguesa envolvendo figuras de topo angolanas, repetindo-se a questão das fugas ao segredo de justiça.

Erros das partes

A contextualizar esta nova subida de tom de Luanda para com Portugal, tanto Ismael Mateus, jornalista e professor universitário, como Paulo de Carvalho, sociólogo e também professor universitário, entendem, como se depreende das suas declarações ao Novo Jornal online, que há uma má avaliação por parte do MIREX quando não separa a questão judicial que envolve cidadãos das questões de Estado.

Mas ambos os analistas concluem que a forma como o Ministério Público português se permitiu mais uma quebra do segredo de justiça, colocando o dedo em cima de uma ferida que existe há muitos anos, que são as constantes fugas de informação, vazadas para os jornais a partir dos processos, deixa uma porta aberta para que em Angola se admita que existe uma agenda política por detrás destas fugas "estratégicas".

Paulo de Carvalho entende que "é importante separar o público do privado", distinguindo o que são "as relações entre Estados" e o que "cada um faz enquanto cidadão", porque "os estados não devem imiscuir-se naquilo que são problemas que envolvem os seus cidadãos".

Também Ismael Mateus é de opinião que as questões na justiça envolvendo pessoas "não podem colocar em questão as relações entre Estados", apontando a acusação do MP português a Manuel Vicente como "um problema judicial".

"Acho mesmo que o comunicado do Governo angolano (emitido pelo MIREX) demonstra que se sentiu obrigado a uma manifestação de solidariedade para com o Vice-presidente", notou o jornalista.

Mas Ismael Mateus aponta como grave que o Vice-presidente de Angola, que podia ser de outro país qualquer, e que "devia ter um tratamento adequado", tenha sido submetido a uma situação destas em que fica a saber pela comunicação social que é acusado destes crimes, e não com a formalidade que a circunstância aconselharia, até porque "não está nem foi ainda condenado por nada".

Paulo de Carvalho interroga-se, depois de ter sublinhado que o Governo angolano devia partir do princípio de que a "a separação de poderes é efectiva em Portugal", mesmo que o poder judicial luso "tenha um comportamento que denota possuir uma agenda política", nomeadamente para com Angola, "se em Portugal se pode afirmar sem margem para dúvida que existe um Estado de Direito".

E explica o porquê da sua dúvida: "Não se pode afirmar que o Estado de Direito esteja a ser respeitado e exercido quando se repete o desrespeito pelo segredo de justiça" e que este "desrespeito ao Estado de Direito é repetido com total impunidade" porque, "que se saiba, não há condenações de quem fere com esta gravidade esse mesmo Estado de Direito".

"Em síntese, o MP português tem uma agenda política que tem Angola no seu centro e a comunicação social portuguesa também", mas "não pode ficar margem para dúvidas de que este caso não deve prejudicar as relações entre os dois países", até porque estas decorrem, concluiu o sociólogo ao Novo Jornal online, em "terrenos bastante escorregadios e é muito difícil perceber todos os porquês" destes episódios cíclicos.

Regressando à opinião de Ismael Mateus, este aponta como um erro utilizar as relações entre Luanda e Lisboa "como um joguete", apontando o palco indicado para dirimir estes problemas a Justiça, admitindo que o Governo angolano está certo quando protesta pela forma como estas coisas se vão sucedendo.

No entanto, Ismael Mateus deriva na sua análise para outra questão não menos evidente no que toca ao relacionamento entre os dois países: "a hipersensibilidade que existe em Angola para tudo o que se escreva em Portugal sobre o país", porque "existe uma evidente diferença na reacção em Angola entre o que se diz na comunicação social de outros países e o que se diz em Portugal".

"Mas também é verdade que Angola é um tema que vende na imprensa portuguesa e isso demonstra igualmente uma especial sensibilidade na sociedade portuguesa para com os temas angolanos", disse, acrescentando que, "provavelmente, isso é assim porque há ainda uma boa parte da sociedade portuguesa que olha para Angola como a jóia da coroa que está a ser estragada".

Ismael Mateus termina ironizando, depois de sublinhar que as relações entre Portugal e Angola são de uma tremenda dificuldade para analisar: "Acho que é um problema de sofá, uma coisa para o divã de um psiquiatra!".

O princípio

O vice-Presidente da República, Manuel Vicente, foi acusado de corrupção activa pela justiça portuguesa, num caso que envolve o ex-procurador luso Orlando Figueira e suspeitas de pagamento de 760 mil euros para obter decisões favoráveis em dois inquéritos.

A informação consta de uma nota da Procuradoria-geral da República lusa.

De acordo com o comunicado, Manuel Vicente foi também acusado de branqueamento de capitais e falsificação de documentos, enquanto sobre Orlando Figueira pendem, além da acusação por corrupção e branqueamento de capitais, suspeitas de violação do segredo de justiça e de falsificação de documento.

As acusações foram formalizadas no âmbito da Operação Fizz, que envolve a compra de apartamentos de luxo em Portugal por Manuel Vicente.

O processo foi desencadeado a partir de uma transferência realizada pelo antigo homem forte da Sonangol, no valor aproximado de 8 milhões de euros. A transacção fez soar os alertas da supervisão financeira portuguesa, que notificou, conforme manda a lei lusa, a Polícia Judiciária.

Para Manuel Vicente este processo não tem fundamento

Numa nota distribuída à imprensa portuguesa, o advogado Rui Patrício, responsável pela defesa de Manuel Vicente, veio dizer, pouco depois de ter sido conhecida a acusação, que nem ele nem o seu cliente foram notificados.

"Muito me espanta que o meu constituinte possa ter sido acusado, não só porque nada tem a ver com os factos do processo, mas também porque nunca foi sequer ouvido", escreveu o advogado, defendendo a nulidade do processo por violação grave e séria do que considera ser uma obrigação processual fundamental.