Quando o episódio polémico gerado por uma intervenção musculada da polícia portuguesa naquele bairro, que envolveu, há cerca de duas semanas, confrontos com alguns dos residentes, incluindo uma família angolana, estava quase esquecido, o Presidente português resolveu pegar no seu carro pessoal e foi a conduzir, sem motorista, com, soube-se depois, escassa segurança, até ao Jamaica, para falar com os habitantes, tentar perceber como está a correr o processo de realojamento das famílias para casas novas e... como sempre acontece, fazer umas quantas "selfies" com jovens residentes, incluindo Hortêncio Coxi, o jovem angolano que, a 20 de Janeiro, foi detido pela polícia por alegadas agressões a um agente.

Esta deslocação inesperada de "Ti Celito" ao Jamaica não caiu bem no seio da polícia portuguesa, especialmente por causa da "selfie" que o Presidente fez com Hortêncio Coxi, tendo a Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP), um dos sindicatos da Polícia de Segurança Pública (PSP), vindo a público criticá-lo por se ter colocado ao lado de alguém que alegadamente agrediu um agente da polícia e não ter tido igualmente um gesto de simpatia pelas forças de segurança.

"Nada contra ele (Presidente da República) ir à Jamaica ou onde quiser, mas menosprezar quem produz segurança no País e nunca ter proferido uma só palavra em favor destes profissionais é um sinónimo do desprezo completo", acusou Paulo Rodrigues, presidente da ASPP.

Marcelo Rebelo de Sousa não esteve mais de 45 minutos no Jamaica, mas a sua breve passagem pelo bairro gerou, e está a gerar, horas de discussão pública em Portugal, o que obrigou, numa ocasião rara, o próprio a vir a pública explicar-se, sublinhando, em síntese, que as forças de segurança não estão no mesmo patamar que as comunidades e que quando anda pela rua não pergunta às pessoas com quem faz selfies se têm ou não cadastro.

E disse mais, criticando o "clima de guerra racial" que se viveu após o episódio no Jamaica, quando agentes da polícia e moradores se envolveram em confrontos por razões fúteis, segundo os residentes, por terem sido agredidos, segundo a versão da PSP, mas que um inquérito formal, que ainda decorre, deverá apurar.

"Ti Celito" acrescentou que esta visita em segredo foi para, precisamente, combater a ideia que foi introduzida na discussão pública que se seguiu de que existe um clima de "uns contra os outros", de "brancos contra negros", sublinhando que o importante é que "todos são portugueses".

À acusação de "desprezo pela polícia" feita pelo líder da ASPP, Marcelo respondeu que "a última coisa de que Portugal necessita é de haver qualquer tipo de comportamento que crie um empolamento artificial na sociedade portuguesa de um conflito racial, que é uma porta aberta à xenofobia e ao radicalismo, que deu o resultado que deu noutros países".

E ainda: "Quando ando pela rua em contacto com os portugueses não peço o cadastro criminal, nem fiscal, nem moral para falar com eles ou tirar selfies", afirmando também que, face à acusação de ter cometido o erro de ter ido ao Jamaica antes de estarem apuradas as responsabilidades de uns e de outros, desde o "primeiro momento" que separou os "factos em investigação" pela justiça da "realidade global" porque "não se pode generalizar".

"Não se pode generalizar, que é o que muita gente começou a fazer, criando um clima de uma guerra racial. Foi precisamente contra esse clima de guerra racial que lá fui, para dizer que aquele é um bairro tão português como todos os outros", frisou.

O que é importante, segundo Marcelo, é que no Jamaica não aconteceu "uma guerra de um bairro negro contra uma polícia branca, ou de uma polícia branca contra um bairro negro".

Num tom raramente ouvido nas suas intervenções e declarações, Marcelo, citado pela imprensa portuguesa, defendeu que o que se passou no bairro Jamaica foi que "houve e há uma comunidade portuguesa, num bairro português que tem problemas críticos, habitacionais, como muitos outros, embora com um plano de realojamento, e uma força de segurança, uma polícia portuguesa, que exerce a sua função ao serviço do Estado de Direito democrático, como eu disse desde a primeira hora".

E, segundo o jornal Público, deixou um recado claramente dirigido ao sindicato policial "Por definição, as forças de segurança exercem a sua autoridade relativamente a todas as comunidades no espaço nacional, urbano ou não urbano. Estar a querer equiparar essas realidades é diminuir o papel das forças de segurança. Não perceber isto é não perceber o papel das forças de segurança, que estão num plano diferente da sociedade relativamente ao qual exercem autoridade".

O que se passou a 20 de Janeiro

Um vídeo publicado nas redes sociais mostrando claramente uma família angolana a ser agredida por agentes da polícia, num Domingo de manhã, 20 de Janeiro, despoletou uma das mais simbólicas crises envolvendo a comunidade angolana em Portugal.

As autoridades portuguesas abriram um inquérito imediatamente mas a versão da polícia foi lesta a garantir que a patrulha policial foi recebida à pedrada quando foi chamada para terminar com uma confusão entre moradores. A família Coxi garante que a polícia chegou ao bairro com vontade de bater.

Segundo a versão dos acontecimentos relatada pela PSP, as agressões tiveram como razão inicial o arremesso de pedras por parte de um homem de 32 anos, de naturalidade angolana, aos agentes que se deslocaram ao bairro Jamaica. O nome de Hortêncio Coxi só mais tarde chegaria às notícias.

A versão foi, no entanto, desmentida pela família Coxi, que garantia que os agentes da PSP já chegaram ao bairro com uma clara predisposição para a agressão sem que sejam conhecidos os motivos.

Segundo os relatos da imprensa portuguesa naquele dia, as agressões policiais começaram quando, no Domingo de manhã, no momento em que decorria uma festa familiar de aniversário, surgiram desacatos entre um grupo de mulheres e a polícia foi chamada a intervir, tendo deslocado para este bairro, conhecido pela sua precária situação social, uma patrulha.

Na versão da família, os agentes da PSP, depois de terem ficado dentro dos carros por algum tempo, sem qualquer intervenção face aos desacatos entre os moradores, nem fizeram perguntas e partiram logo para a agressão.

O entendimento da polícia é outro: a patrulha foi simplesmente recebida com o arremesso de pedras e que a força utilizada foi a "estritamente necessária" para lidar com a situação com que os agentes se depararam.

O resultado foi que vários membros da família Coxi tiveram de receber tratamento hospitalar, enquanto o relato da PSP aponta para um ferido entre os agentes da Brigada de Intervenção Rápida, que se deslocaram ao bairro, em resultado de ter sido atingido por uma pedra na boca.

Pelo menos seis pessoas deram entrada no Hospital Garcia da Horta, no Seixal, e o indivíduo que arremessou a pedra foi detido.

Em reacção a este caso, cuja dimensão foi exponenciada pela captura de imagens em vídeo e com a sua dispersão através das redes sociais, a organização portuguesa SOS Racismo considerou como "inaceitável" o que se passou no bairro Jamaica e garantiu que vai acompanhar de perto esta situação e as suas tramitações.

O que é o Jamaica?

O bairro Jamaica, urbanização que começou a ser erguida há mais de 30 anos, no Seixal, periferia de Lisboa, mas que ficou por acabar, foi tomada por centenas de famílias, na sua maioria, oriundas das ex-colónias portuguesas em África.

Tornou-se uma das áreas degradadas mais conhecidas da Grande Lisboa, tanto pelos bons exemplos de projectos sociais como pelo índice de criminalidade.

São mais de 1300 pessoas que ali vivem, embora já estejam a decorrer processo de realojamento com transferência para casas sociais novas e construídas para estas famílias.

O risco de ocorrer ali uma tragédia é já assumido por todos, até porque os prédios foram sendo transformados pelos moradores, colocando mais divisões nos prédios, bem como se foi acentuando a degradação das fundações dos edifícios, alagadas quase em permanência por falta de sistema de escoamento de águas ou saneamento básico.