No documento, o governo angolano afirma que acolheu "bem a recomendação do Comité para rever a legislação sobre o aborto no sentido de permitir que ele seja feito por razões terapêuticas e em caso de gravidez resultante de estupro ou incesto" e destaca, "no âmbito da revisão legislativa do Código Penal", a inclusão do artigo 158.º, com a epígrafe "Interrupção de Gravidez não Punível".

Este artigo, que "alarga o âmbito de situações em que o aborto é permitido", prevê "a possibilidade de aborto consentido" nas primeiras 10 semanas; em caso de risco de vida da mulher, nas primeiras 16 semanas; em caso de inviabilidade do feto e de malformação ou doença nas primeiras 24 semanas" e caso "a gravidez tenha resultado de uma relação forçada".

Três anos depois, a AN este quase a deitar por terra os oito parágrafos do relatório, retirando o artigo 158.º do projecto, em contraciclo com aquele que é o sentido da legislação aprovada nos Países Africanos de Expressão Portuguesa (PALOP) e na CPLP.

Este cenário não se concretizou ainda, mesmo que nada esteja garantido de que o aborto não será criminalizado, sem excepções, mas os deputados da AN admitiram, quase à última da hora, que é mais prudente alargar o prazo para o debate em torno desta matéria, pela sua sensibilidade social.

Isto aconteceu depois de se ter levantado um coro de críticas à posição mais retrograda que ia a votação, num momento de campanha eleitoral, onde o elevado peso das igrejas é mau conselheiro para que o país, no seu todo, trate de um assunto desta natureza, para além de Angola estar a seguir em contramão com aquilo que é a realidade global.

Cabo Verde foi o primeiro país a legislar no sentido de despenalizar o aborto até às 12 semanas e fê-lo logo em 1986. Seguiu-se Portugal, que aprovou, em 2007, legislação que permite a interrup- ção voluntária da gravidez até às 10 semanas, com resultados na diminuição de abortos no país, divulgados em 2015.

Moçambique, país onde 11% dos óbitos durante a maternidade eram causados por abortos clandestinos, aprovou, em Dezembro de 2014, legislação que despenaliza o aborto nas primeiras 12 semanas e, no caso de violação, até às 16 semanas. A lei inclui situações em que a gravidez coloca em risco a vida da mulher ou no caso de má formação do feto.

O Brasil tem uma das leis mais restritivas, admitindo a interrupção quando há risco de vida da mãe, no caso de violação ou no caso de feto sem cérebro. Contudo, o âmbito da lei tem vindo a ser alargado, por jurisprudência, após decisões do Supremo Tribunal Federal, a última das quais há quatro meses.

A decisão do colectivo de juízes - que apreciou favoravelmente um habeas corpus que revogou a prisão preventiva de um médico e quatro funcionários de uma clínica em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro - representa um passo em frente na descriminalização do acto, desde que efectuado no início da gravidez, como admitiu o Folha de S. Paulo.

O colectivo de juízes, constituído pelos magistrados Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Edson Fachin, considerou que os "artigos do Código Penal que criminalizam o aborto no primeiro trimestre de gestação violam direitos fundamentais da mulher", nomeadamente o seu direito à autonomia, à sua integridade física e psíquica, os seus direitos sexuais e reprodutivos e à igualdade de género.

"Na medida em que é a mulher que suporta o ónus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não", escreveu.

O magistrado - que no seu voto afirma que o aborto não é algo bom e que o papel do Estado deve ser evitá-lo, mas com educação sexual, distribuição de contraceptivos e apoio às mulheres que desejarem manter a gravidez, mas que não tenham condições - considera que a "criminalização do aborto causa uma discriminação contra as mulheres pobres, que não podem recorrer a um procedimento médico público e seguro, enquanto as que têm condições pagam clínicas particulares".