Novo Jornal: Em que pé está o processo judicial que a Associação Angolana dos Direitos do Consumidor (AADIC) intentou contra o Estado com vista a impugnar o pagamento de até 60% das propinas durante o estado de emergência?

Lourenço Texe: A petição inicial deu entrada no Tribunal Supremo (TS) a 5 de Maio e presumimos que o processo esteja já a passar para a distribuição geral e, depois, será direccionado para um dos juízes do TS. Além da acção principal, vamos nesta semana colocar a providência cautelar, porque o objectivo é impedir que se faça valer o decreto executivo conjunto até que se conheça a decisão final do pedido de impugnação do referido decreto.

O que é que a AADIC reivindica concretamente?

Entendemos que o decreto executivo conjunto que autoriza a cobrança das propinas durante o estado de emergência é ilegal.

Porquê?

Primeiro: ele não se baseia em nenhum aspecto legal para a sua aprovação. Segundo: é eivado de omissões, porquanto não determina sequer na sua materialização a forma de execução da cobrança das propinas e tem um fundamento que tem a ver simplesmente com o estado de emergência. Ora, o estado de emergência foi declarado por um decreto presidencial provisório que dá origem a vários regulamentos, sendo que no regulamento principal em nenhum momento se faz referência à obrigatoriedade do pagamento de um serviço que não tenha sido prestado. Por exemplo, ao determinar o encerramento de escolas para evitar ajuntamentos populacionais que facilitem a propagação da Covid-19, em circunstância alguma o decreto presidencial faz referência à anulação do ano académico. Ou seja, se por um lado existe o encerramento dos estabelecimentos escolares, por outro lado, não se determina que não se dêem aulas.

Ora, havendo a possibilidade de se darem aulas, era responsabilidade das instituições de ensino privadas criar condições para ministrarem as aulas pelos meios tecnológicos existentes e poderem, então, justificar a cobrança.

Mas há instituições que o fizeram...

Fizeram de forma muito precária. Há outros aspectos que devemos pôr em consideração. Por exemplo, como mensurar o que foi feito e o aproveitamento que se vai ter do mesmo? Foi feita uma distribuição de conteúdos? Se sim, a quem? Para alunos que tenham seis ou sete anos? Como que estes alunos menores vão ser acompanhados? Pelos encarregados de educação? Os encarregados de educação estão todos eles em condições de acompanhar os meninos com os alegados conteúdos que foram distribuídos? Qual a razão, portanto, para se fazer um decreto executivo conjunto para haver cobrança em todas as instituições de ensino privadas, quando nem todas elas cumpriram com pressupostos básicos. Se há interesse em cobrar-se propinas, devia-se pensar primeiro em rever-se o ano lectivo, estendendo- o para um outro período que garantisse que os serviços fossem prestados para haver condições para cobranças, seja a 60% ou 100%.

Isso é o que entende que deveria ter acontecido. No entanto, em função do que se tem registado, qual julga que seria a percentagem ideal a ser cobrada?

Desde que se justifique que houve a prestação de serviços, pode cobrar-se até 100%. Não há problemas nenhum, o problema é como mensurar isso. E aqui estamos a falar de um elemento que tem a ver com aspecto legal: é a inversão do ónus da prova. Se nós, AADIC, estamos a dizer que não houve prestação de serviços, cabe a eles [colégios e universidades] provarem que efectivamente prestaram serviços.

O estado de emergência não suspende o pagamento de salários. Como espera que os colégios - que só em Luanda têm mais de 100 mil professores - cumpram com esta obrigação se não cobrarem aos encarregados que, por sua vez, receberam os seus salários mesmo estando confinados?

Na maior parte dos colégios e universidades, os professores são pagos por cada aula que ministram. No fim do mês, faz-se um somatório de todas as aulas para daí se definir o salário a ser pago. Ou seja, se um professor não der aulas, não recebe nada.

Está a ignorar o facto de os colégios também terem o ensino primário, que funciona no regime de monodocência, pelo que o professor dá aulas todos os dias e é pago mediante um contrato que prevê um total de 10 meses lectivos...

Não é a maioria, e falo com conhecimento de causa. Repare que nós tivemos intervenção na proposta que deu origem à Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino (LBSEE) e reprovámos algumas normas constantes naquela lei, mas, ainda assim, a lei aprovada.

Fizeram-no cheio de insuficiências e, hoje, são obrigados a criar instrumentos normativos para regular instrumentos específicos.

Um decreto de 4 de Maio alterou a taxa para a obtenção de diplomas nas universidades públicas de 4.000 para 20.000 kwanzas, mas a AADIC não fez qualquer pronunciamento, ao contrário do que sucede quando se trata do sector privado...

O diploma é novo e, quando se deu a sua publicação, estávamos focados noutra questão.

Mas o que acha dos valores estabelecidos neste diploma, que fixa, por exemplo, uma propina de 1.900 kwanzas para o diurno e aumenta em 500% a taxa para a aquisição de certificados?

O Executivo devia olhar para a renda familiar e para o salário mínimo para poder fazer estas alterações.

A AADIC planeia mover algum processo?

Só podemos intervir nas relações em que o fornecedor visa obter lucros. Não é o caso das universidades e instituições públicas que passam a cobrar propinas. No entanto, se se determinar que o objectivo destas instituições é o alcance e a obtenção de lucros, aí já teremos uma palavra dizer.

Ou seja, desde que não aleguem lucros, as universidades públicas podem até cobrar 200 mil kwanzas, mas a AADIC não se iria opor.

Estamos em crer que o sector público também não chegaria a tanto. Cremos que, no sector público, estas cobranças visam a manutenção das instituições.

Antes desta nova polémica, a AADIC havia intentado uma acção judicial contra quatro colégios e três universidades devido à suposta cobrança irregular de propinas, mas o processo não deu em nada...

Não é bem assim. Uma providência tem um período de um mês para ser respondido pelo tribunal. Acontece que, enquanto ainda decorria este prazo, surgiu o estado de emergência e suspendeu o período de contagem dos prazos legais das peças processuais. Mas estamos a acompanhar o processo, através na nossa área técnica e jurídica.

A AADIC não tem outra via para se fazer ouvir que não seja pela «contenda judicial»?

A AADIC tem feito chegar as suas preocupações às sessões ordinárias do Conselho Nacional de Concertação Social, de que é membro, e à Assembleia Nacional, por via 10.ª comissão, para onde seguem os seus relatórios. Não devemos é perder de vista os lobbies. Se reparar, a escassez de um determinado bem de consumo ocorre sempre que um determinado conglomerado de empresas detentoras do monopólio da importação fazem-no rarear para serem eles a terem o privilégio de importá-los.

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