As verbas para o ensino primário sofrem, neste Orçamento Geral do Estado (OGE), um corte de 32,3%, passando a totalizar uns escassos 195,6 mil milhões de kwanzas. Já o ensino secundário passa a dispor de 228,1 mil milhões. O quadro do ensino primário é crítico, persistem as dificuldades no acesso, com um grande número de crianças e até mesmo adolescentes que não conseguem entrar na escola. Embora os números oficiais apontem agora para dois milhões, a ADRA prefere usar os dados do Censos, porque são os que lhes parecem mais consistentes.

E, de acordo com o relatório definitivo do censo geral da população e habitação realizado em 2014, no país há cerca de 22% da população, entre os cinco e os 18 anos, que está fora do sistema de ensino.

Novo Jornal Online (NJOnline) - Estamos, portanto, a falar de cerca de 14 milhões de pessoas nessa condição?

Carlos Catumba (CT) - Sim, e isso é visível. Quando nos deslocamos para o interior do país, sobretudo, encontramos localidades onde não existem escolas nem professores. Nem é preciso ir muito longe, no município da Kissama, província de Luanda, na localidade de Kissinge, existem cerca de 2000 famílias mas não encontramos escolas em funcionamento. Esse é um problema que deve ser encarado com muita seriedade sob pena de fazer perigar os desafios de assegurar uma economia que proporcione o bem-estar das famílias. Todos nós sabemos que não existe outra via que não a da Educação para promover os níveis de crescimento e de desenvolvimento. E, estando o país com um novo governo - e é importante sublinhar isso: estamos a falar do primeiro Orçamento Geral do Estado do novo Governo - é importante que as opções assumidas possam transmitir alguma esperança à população, porque o OGE é uma política pública que, à partida, dá indicações sobre a solução dos problemas sociais. E este OGE, do ponto de vista da sua estrutura e das opções políticas, em termos de alocação de verbas, mostra claramente que continuaremos a ter os mesmos problemas que temos vindo a enfrentar.

NJOnline - Imagino que a reacção da ADRA, quendo o OGE foi aprovado na generalidade tenha sido a dos outros parceiros: de profunda decepção.

CT - Nós não esperávamos uma alteração substancial porque entendemos que, quer do ponto de vista da sua estruturação, quer do ponto de vista da alocação de verbas, deve ser um processo. Esperávamos que houvesse pelo menos um equilíbrio na alocação de verbas fundamentalmente para o sector social. Estamos a falar com maior incidência para a saúde, a educação, a agricultura, porque não é possível materializar o direito à educação em condições de fome, o que se verifica actualmente no nosso país. Estamos a falar da protecção social, e portanto esperávamos que houvesse um equilíbrio, quando comparamos estes sectores com aqueles que tradicionalmente têm sido os mais beneficiados, como é o caso da Defesa, Segurança e Ordem Pública. Mas voltámos a contatar o mesmo de sempre: os OGE anteriores, durante o conflito armado, foram sempre muito altos - e, na altura, podia-se entender, o país estava mergulhado numa guerra intensa. Agora que Angola alcançou a paz, fica difícil entender a insistência num maior investimento nesse sector.

NJOnline - E também é mais difícil de justificar.

CT - Exactamente. Mas é importante sublinhar que, quando nós dizemos que o sector da Defesa, Segurança e Ordem Pública são os mais beneficiados, não estamos a dizer que são sectores menos importantes. Pelo contrário. Nós reconhecemos que não é possível promover o bem-estar, assegurar uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade, não é possível concretizar estes objectivos num clima de insegurança. Mas é importante que o Governo possa perceber que investir em sectores estratégicos como a Educação é também assegurar a paz, é também promover a segurança social, porque o que causa muitas vezes a insegurança tem a ver com as injustiças sociais que se verificam no país. É importante que essa mensagem possa ser efectivamente bem interpretada.

NJOnline - Até porque, depois de uma guerra, em que muitos valores ruíram, a Educação é fundamental para reconstruir um país...

CT - Claro. Até porque Educação não tem apenas a ver com a parte instrutiva - o saber fazer - mas também com o sentido da ética e da moral, o sentido cívico - o saber ser e estar -, e isso só é possível se as escolas tiverem a possibilidade de desenvolver projectos educativos, o que hoje infelizmente não se constata. O contacto directo que temos com diferentes escolas, do ensino primário ao secundário, permite-nos perceber que existe essa vontade, mas não têm recursos para os executar. Muitas vezes envidam esforços junto de empresas locais, mas estas escusam-se a apoiar porque no nosso contexto ainda não existe, infelizmente, esta cultura de apoiar directamente as escolas. Sendo o Governo a entidade que tem a responsabilidade de garantir o direito à Educação, deveria empenhar esforços de modo a encontrar formas que permitam às escolas exercer o seu papel de educar, e uma das formas deveria ser uma das coisas que temos vindo a defender: assegurar que cada escola possa tornar-se numa unidade orçamental, ou seja, que anualmente o OGE reserve uma fatia para o funcionamento regular das escolas.

NJOnline - Mas para isso tem de haver uma planificação no que respeita à elaboração do próprio OGE. Não se pode andar a copiar o mesmo OGE de ano para ano.

CT - Sim, a política de elaboração do OGE tem de ser revista, no sentido de responder aos problemas sociais. A prática actual mostra que os municípios elaboram a proposta orçamental, que sai do município, vai à província e sofre cortes, sai da província, vai à estrutura central, volta a sofrer cortes. Se o governo aprovar uma medida segundo a qual as escolas devem ser unidades orçamentais, isso vai fazer com que as escolas de um município possuam efectivamente um orçamento para poderem funcionar, dando respostas às suas próprias necessidades.

NJOnline - Ou seja, permitiria fazer um cálculo das necessidades para o ano seguinte.

CT - Exactamente. É que nós temos estado a cometer erros sistemáticos que já devíamos evitar. A forma como as escolas de Luanda pensam desenvolver a sua actividade é aplicada à forma como se deve desenvolver no Cunene ou no Namibe. Mas não: é o mesmo país, mas temos realidades muitíssimo diferentes e a forma de pensar os projectos educativos não pode ser a mesma. O projecto educativo deve estar de acordo com a realidade local.

NJOnline - Esse é um papel que cabe também aos Governos Provinciais...

CT - Certo, mas como as escolas não são unidades orçamentais, os Governos Provinciais não têm competência para poder assegurar que cada escola tenha uma verba que permita o seu próprio funcionamento. Devemos ter consciência de que algumas medidas políticas que estão a ser tomadas poderão ajudar a resolver a situação, como a questão da municipalização dos serviços públicos, que é uma ideia antiga que precisa de ser concretizada. Mas enquanto isso não acontece, é preciso encontrar medidas alternativas que possam permitir o funcionamento das escolas. Estamos a falar de problemas simples, que têm soluções locais, porque o discurso político está avançado mas a prática não está. Enquanto a prática não está avançada, vamos encontrar medidas que permitam soluções, e uma delas é tornar as escolas unidades orçamentais. Enquanto se continuar a insistir neste modelo de OGE, que é feito de cima para baixo, não haverá respostas.

NJOnline - A prática, nos últimos anos, segundo os parceiros sociais, tem sido a de chamar as organizações da sociedade civil quando já não há nada a fazer. Entretanto, este ano, o Presidente da República, depois das muitas críticas, quer dos partidos da oposição, quer da sociedade civil, veio a público dizer que ia ser feito um esforço no sentido de aumentar as verbas para a Educação e para a Saúde. Considera que a prática está a mudar? A ADRA está optimista?

CT - Estamos optimistas e esperamos que esta intervenção do PR venha a materializar-se. E nesse caso será a primeira vez em que as organizações da sociedade civil se pronunciam sobre uma matéria e o Executivo procura dar respostas a esses alertas e exigências. Durante muito tempo, as organizações eram convidadas a participar em sessões de auscultação sobre a proposta do OGE, apresentavam sugestões fundamentadas e estudos de casos e análises, mas dificilmente essas sugestões apareciam na versão final. Se este ano isso vier a acontecer, é um muito bom sinal, no sentido em que poderá a encorajar cada vez mais a que haja interacção e pode também ser um sinal de que o Governo está aberto ao diálogo. Porque uma das questões que sempre se colocou foi "de que adianta ir à Assembleia Nacional apresentar sugestões, quando nunca são tidas em conta?" Isso desmotiva.

NJOnline - E isso era efectivamente a inauguração de um novo ciclo, certo?

CT - Exactamente. Estaríamos a inaugurar um novo ciclo, em que era dada confiança aos cidadãos, dizendo-lhes que o seu contributo é importante para o processo de formulação de políticas públicas, dando a ideia de que quando a sugestão é fundamentada, ela é apreciada e aproveitada. E o grande desafio é passar das ideias e das leis à prática. Porque nós temos boas leis, mas que depois não correspondem à prática. O ensino, na teoria, é obrigatório e gratuito até ao 9º ano. Na prática, isso não é verdade. No país existem muitas experiências, muitas delas desenvolvidas pela sociedade civil. Essas experiências podem ser aproveitadas, até porque muitas delas estão sistematizadas, disponíveis, e muitas delas foram partilhadas com as instituições do Estado e deveriam ser aproveitadas para maximizar os resultados. A ADRA não está em toda a parte do país, mas o Governo está e pode aproveitar as experiências da ADRA e de outras organizações para assegurar que, onde uma dessas organizações não esteja, o Governo possa aplicar essa experiência.

NJOnline - Como o programa da merenda escolar?

CT - Sim, porque é um programa que joga um papel crucial para o processo de ensino e aprendizagem, porque permite responder a dois problemas fundamentais: evitar os índices do abandono escolar, porque as crianças (e os pais) sabem que tem fome, mas na escola vai comer. Não fica em casa, vai à escola, o que resolve o problema da fome. Esse é um dos programas que mais cortes sofreu, na ordem dos 7%, de 70 mil milhões de kwanzas. E é por isso que este programa não é executado em todo o país. É executado em apenas alguns municípios e de forma intermitente. E o que o regulamento da merenda escolar diz é que a merenda deve ser fornecida nos dias de aulas, ou seja, de segunda a sexta-feira, em todas as escolas primárias públicas e comparticipadas, e até nas privadas. E não às segunda e quintas, por exemplo.

NJOnline - Mas nesse caso, como em outros, não vamos voltar à história da corrupção?

CT - Sem sombra de dúvida, essa questão coloca-se, nomeadamente quanto ao processo de contratação das empresas que prestam estes serviços. Muitas delas justificam-se com a inflacção. E a alimentação fornecida não responde aos padrões internacionais. O regulamento diz muito claramente que deve haver uma aposta em distribuir alimentação produzida localmente. Mas isso não acontece. Devemos reiterar a importância do programa e assegurar que haja condições para poder avançar, estabelecendo, inclusivamente, parcerias com associações e cooperativas locais. Na ADRA temos uma experiência de sucesso, que pode ser replicada. De Kakula, em que os pais e encarregados de educação de duas escolas estabeleceram parceria com as escolas, e estas, por sua vez, com a administração municipal. Os pais estão organizados em associações e cooperativas agro-pecuárias, produzem e confecionam a alimentação e fornecem as escolas. E isso funciona de segunda a sexta-feira. Neste caso a custo zero, mas este tipo de experiência devia ser abraçada pelo Governo, no sentido de ter algum apoio para que possa ir além.

NJOnline - Até porque pode ter retorno, nomeadamente económico, promovendo o emprego nos municípios, estimulando a produção local, etc.

CT - Sem dúvida. E assegura que a alimentação seja de qualidade. A nossa experiência mostra que nas comunidades abertas ao diálogo, com vontade de aprender e participar, basta um pequeno empurrão, elas depois caminham. É importante é que haja verbas para estes programas e que sejam geridas pelas administrações locais.

O Novo Jornal Online sentou-se à mesa com parceiros sociais, como o SINPROF, a HANDEKA, a ADRA, com deputados da comissão parlamentar da Educação, como Jaka Jamba, e pediu ainda pareceres a sociólogos e economistas sobre um dos sectores que mais importância tem na vida dos cidadãos e na construção de um país.

Neste Especial Educação, para tentar esboçar um retrato o mais fiel possível do estado do sector no país, contamos com os leitores. Queremos também saber o seu ponto de vista sobre este tema e conhecer a sua história ou a de alguém que lhe seja próximo. Para isso, basta que nos envie um mail para [email protected].