O bairro Povoado e Cabo Ledo, onde o Novo Jornal esteve esta semana, está localizado na zona costeira do morro da Samba, nas proximidades do bairro da Coreia, na nova Marginal de Luanda, apesar de ser um único espaço, as desavenças entre os habitantes fizeram com que o bairro fosse dividido por uma pequena vala, que ambos os lados usam como casa de banho. É daí que vem o facto de o mesmo bairro ter dois nomes: Povoado e Cabo Ledo.

As razões da rivalidade são desencontradas, cada morador conta a sua versão, mas todos vivem a mesma dificuldade. É uma pequena comunidade com enormes problemas, onde falta de tudo, menos promessas de dias melhores. Das quais dizem já estar cansados. Sem alternativa, têm na paciência a única saída.

Mas se uma vala divide estes dois "bairros", a sarna, a diarreia aguda, o paludismo e as Infecções pulmonares, os maus cheiros, a total ausência de condições de habitabilidade, unem estas mais de 600 famílias naquele que é, seguramente, uma das zonas de Luanda, a dois passos da Cidade Alta, com piores condições para se viver.

A realidade social daquela povoação é de miséria, casas de chapas de zinco, algumas sem portas nem janelas, encavalitadas umas sobre as outras, sem as mínimas condições higiénicas, com águas putrefactas e carregadas de lixos domésticos como presença permanente.

Os moradores convivem com os mosquitos e outros insectos rastejantes e voadores, fazem as necessidades maiores em baldes e em sacos que depois são, por falta de alternativa, atirados às águas no mar, na zona de pesca. A pesca é o sustento da maioria das pessoas que ali vivem.

No Povoado e Cabo Ledo, como o Novo Jornal constatou, não há água nem energia eléctrica, existem duas casas de banho comunitárias, construídas pela administração da Samba, recentemente, mas que nunca chegaram a funcionar, tal como os reservatórios de água instalados este ano, por conta da pandemia da Covid-19.

Quando chove...

Mas se viver ali é sempre o "inferno", como muitos dizem, na época das chuvas, esse sofrimento sobe para níveis que, garante que conhece, é inimaginável para o comum dos mortais, com a água putrefacta, a emanar cheiros insuportáveis, sobe mantém os habitantes sem alternativa à sua presença constante.

Pedro Alexandrina, membro da comissão de moradores, contou ao Novo Jornal que os habitantes das duas localidades, foram desalojados, em 2013, coercivamente da área da Areia Branca, para ser construído um projecto urbanístico, conhecido como a Marginal da Corimba, avaliado em 600 milhões de euros e gerido por uma empresa, a Urbinveste, que tinha como directora-geral Isabel dos Santos, filha do ex-Presidente da República José Eduardo dos Santos.

"Naquela noite fomos surpreendidos por quase todas as forças de defesa e segurança do País. A princípio, era para um desalojamento e pensamos que seriamos contemplados com casas melhores e fomos expulsos, sem explicação nenhuma", lembrou.

Segundo o membro da comissão de moradores, durante uma semana a população desalojada viveu nas ruas da cidade e outros em frente ao Hospital Josina Machel, todos à espera de uma resposta do Governo.

"No mesmo ano, fomos aconselhados pelo comandante da polícia da Ingombota, na altura, a escolher um sítio para deixarmos de ficar nas ruas. Como aqui era um local vasto e sem ninguém, viemos aqui parar e, na época, todos dormíamos ao relento", disse, acrescentando: "Depois, cada um foi fazendo casas de papelão até chagarmos às casas de chapa" que existem actualmente.

Pedro Alexandrina contou ao Novo Jornal que a comissão de moradores já escreveu várias vezes à Presidência da República, Governo Provincial de Luanda (GPL) e outras instituições ministeriais mas nunca obtiverem resposta.

De acordo com este membro da comissão de moradores, das mais de 600 famílias que habitam no Povoado e Cabo Ledo, 80% são desempregados e 20% sobrevivem da pesca artesanal.

Baldes de fezes atirados ao mar

O morador contou que os habitantes fazem as necessidades maiores nos baldes e em sacos plásticos, que de seguida são atirados nas águas do mar.

"O peixe que sai dessa água é o mesmo que consumimos. É assim o nosso dia-dia", contou, adicionando que a sarna, a diarreia aguda, o paludismo e a Infecção pulmonar são as principais doenças que à população do Povoado e Cabo Ledo enfrentam.

Ao Novo Jornal, o membro da comissão de moradores revelou que ali, no Povoado e Cabo Ledo, são realizados dois a três óbitos todas as semanas.

"Todas as semanas temos registo de óbitos aqui no bairro. Isso é um facto", disse Pedro Alexandrina, sublinhando que o dia-dia das crianças é brincar no lixo, não por quererem mas por não terem alternativa, até porque, "só este ano, mais 500 crianças do bairro ficaram fora do sistema normal de ensino".

Em 2016, conta, a população residente recebeu a visita do então governador de Luanda Higino Carneiro, que foi o primeiro dirigente a responder a uma carta feita pela comunidade.

"Quando cá chegou, o governador Higino Carneiro não gostou do que viu, e disse: É inadmissível um bairro com essas condições nas proximidades da cidade Alta. E prometeu tirar o povo de forma faseada, num número de 50 famílias por cada semana ", contou.

Em Julho daquele ano, prossegue o morador, surgiu, de facto, o primeiro sinal. "Foram tirados daqui as primeiras 50 famílias para a zona do Zango e do Panguila, e o processo ficou a cargo da administração da Samba, que agora diz não ser de sua competência essa questão".

O dia-dia das famílias é de muitos sacrifícios e a prostituição faz parte das formas encontradas para sobreviver, reconhecem os moradores

Viver no Povoado e Cabo Ledo, na Samba, como também é chamado, não é fácil, pois falta tudo, dizem os habitantes que esperam por uma casa há sete anos.

Para além das lama, também as calemas...

Mas não é tudo. Para além da lama e águas estagnadas em permanência, há também casas que são fortemente atingidas pelas calemas, sobretudo aquelas que estão próximo ao mar, o que obriga as famílias a pernoitam ao relento por não terem outras alternativas, contaram vários moradores ao Novo Jornal.

Deolinda Alfredo Manuel, moradora, contou que há muita dificuldade no bairro e que as crianças mais pequenas estão em permanente perigo por causa das valas existentes, repletas de água e de lixo.

"Há muitas doenças, vivemos com os mosquitos e ratos. Os nossos filhos não conseguem brincar saudavelmente porque à nossa volta é tudo lixo e miséria. Há muita fome nesta área, por isso temos muita juventude virada para a prostituição", contou.

Helena Diogo, nome fictício, de 27 anos, também residente, reconhece a existência do alto nível de prostituição por causa das dificuldades que passam. A jovem, que diz ter deixado, recentemente, essa prática, afirmou que o recurso à prostituição de muitas jovens é mesmo por falta de trabalho e de outras oportunidades.

"Aqui a juventude não tem muitas escolhas, temos muita fome e o sofrimento é muito, há alturas em que temos que ir bater de casa-em-casa, na Coreia e no bairro Azul, à procura de pequenos serviços ou de comida", lamentou a jovem que é mãe de três filhos e cujo marido faleceu em 2018.

Helena Diogo disse ao Novo Jornal que sonha um dia sair do bairro para sua própria casa e longe do que tem hoje que quer ver como passado distante.

Gritos de fome e de doenças são iguais

Manuel Castelo Branco, coordenador da área do Cabo Ledo, disse que por vezes ninguém consegue distinguir o grito de fome e o grito causada pela dor das doenças nas crianças.

"Aqui o choro das crianças é constante e nós os vizinhos não conseguimos perceber quando é que estão a chorar por fome ou por doença. Há famílias que não têm sequer um pão para comer", descreveu.

Segundo o coordenador, as populações do Povoado e Cabo Ledo, por viverem numa miséria absoluta, dependem quase na totalidade de doações de instituições e pessoas singulares para a sua sobrevivência.

"Há algumas Igrejas e associações que vêem aqui fazer doações de comida e água, outros trazem-nos mosquiteiros e roupa usada. Aqui recebemos tudo e agradecemos", disse.

"Em 2017, antes das eleições gerais, nos mimaram. O partido vencedor (MPLA) juntou-se à nossa causa e prometeu nos ajudar a sair daqui. Mas depois nunca mais cá vieram e ficamos no esquecimento. Em 2022 vão voltar, e seremos outra vez acarinhados", declarou um morador que preferiu não ser identificado, com medo de represálias.

Sobre esta longa espera de 7 anos por uma solução, o Novo Jornal contactou a Comissão Administrativa da Cidade de Luanda (CACL), mas a instituição assegurou que o problema das populações do Povoado e Cabo Ledo, não é da sua responsabilidade, apontando que essa é do Governo central.

Francisco Alexandre, o porta-voz do CACL, reconheceu que aquela população vive em péssimas condições humanas, mas afirmou que os problemas ultrapassam as competências deste órgão.

"A CACL não tem casas para dar. Estamos à espera de um pronunciamento, sobre a questão, do Governo central, que tem sob sua responsabilidade esse assunto", explicou.

Igualmente contactada a administração municipal da Samba, apesar de admitir estar a par desta situação, apontou igualmente como não sendo da sua responsabilidade.