"O legado de José Eduardo dos Santos tem de ser visto nas circunstâncias dos últimos 38 anos em Angola", introduz Martins da Cruz, lembrando que a guerra civil durou de 1975 até 2002 "apesar das diferentes tentativas de paz em que Portugal esteve envolvido".

Tendo este contexto como pano de fundo, o antigo chefe da Diplomacia de Portugal sublinha que "a prioridade" da liderança de José Eduardo dos Santos "foi ganhar a guerra" e garantir a estabilidade.

Para além da conquista da paz, a "era eduardista" fica marcada, na análise de Martins da Cruz, pela entrada de Angola no multipartidarismo e por "um exemplo único" de reconciliação no continente africano.

"Por exemplo, um general que fazia parte da UNITA é hoje o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas angolanas [Geraldo Sachipengo Nunda]", aponta o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, frisando que só depois desses ganhos o país avançou para a reconstrução.

"Como tal, é preciso analisar o legado de José Eduardo dos Santos no contexto e nas circunstâncias de Angola. E o o que é que falta fazer? Falta fazer muita coisa no campo económico-social, seguramente", prossegue o ex-diplomata, que integra a missão de observadores internacionais convidados pela Comissão Nacional Eleitoral para acompanhar as eleições gerais desta quarta-feira, 23 de Agosto.

Na sua análise à liderança de José Eduardo dos Santos, Martins da Cruz nota ainda que, da mesma forma é preciso descontar os efeitos da guerra no desenvolvimento do país, também é preciso ter em conta que a governação tem sido castigada por um problema que lhe é alheio: a quebra do preço do petróleo.

A contaminação das relações luso-angolanas

Ao mesmo tempo, Martins da Cruz alerta para as leituras enviesadas que surgem em Portugal sobre Angola, contaminando as relações bilaterais.

"Há uma predominância, em alguns interlocutores, de considerar que têm o direito de dar palpites sobre tudo o que se passa em Angola", critica o ex-governante luso na entrevista ao Negócios, acusando alguns partidos políticos e alguma comunicação social portugueses de ignorarem que "Angola é um país independente".

Ainda no capítulo das análises que se produzem sobre a situação angolana, Martins da Cruz defende que "Angola tem que ser comparada com os outros países de África e não com os países europeus ou da América do Norte", como tende a ser o caso.

Nesse contexto, Angola tem uma economia e uma estabilidade política que os outros países da região não têm. Ou seja, nós não vemos como na África do Sul escândalos no partido político principal. O ANC (Congresso Nacional Africano) está completamente dividido, até partido em vários partidos e isso não acontece em Angola. Não há assassinatos em massa por motivos religiosos e terroristas como acontece todos os dias na Nigéria, não há senhores da guerra e uma situação de instabilidade permanente como existe, por exemplo, na República Democrática do Congo", aponta Martins da Cruz.

"É neste quadro que o legado de José Eduardo dos Santos tem de ser analisado", reforça o ex-ministro, rematando: "Simplesmente, no contexto africano, o legado é positivo pelas razões todas que indiquei".