"Na base da decisão estão as dificuldades que a maioria desses estudantes de Mestrado, não bolseiros, está a ter para conseguir assegurar as transferências de dinheiro de Angola para Portugal, necessárias para prosseguir os estudos. A culpa não é de ninguém em particular. É da crise que atinge o país", adiantou ao online do Novo Jornal.

A fonte esclareceu que aquela conclusão foi retirada depois de uma leitura ao conjunto de respostas já recebidas pela AEAP no âmbito de um censo aos alunos angolanos em Portugal que a associação está a promover e que ficará concluído apenas no final do ano [link do formulário disponível na página "AEAP Angolanos em Portugal", na rede social facebook].

"Da leitura desses dados conclui-se que há um número muito grande, entre alunos de Mestrado por conta própria, que vai ter de trancar os estudos devido às dificuldades financeiras e regressar a casa, ficando à espera de melhores dias", assegurou.

A diferença entre os bolseiros e não bolseiros, prosseguiu, é óbvia. "Os primeiros, com mais ou menos dificuldades, conseguem ter uma base de sustento regular. As entidades responsáveis pelas bolsas estão a cumprir os respectivos compromissos com os alunos e as universidades. Os restantes, que estão aqui por sua conta e risco, passam por momentos delicados".

Garcia Matumona, que está a prestes a concluir a licenciatura como técnico na área de cardiologia, resumiu essas dúvidas que pairam sobre os seus pares, baseando-se nas respostas ao censo.

"Nas respostas a que tivemos acesso, praticamente todos elegem como problema principal a dificuldade na transferência dos valores de Angola para Portugal, dadas as restrições para movimentar contas bancárias. Quem tinha cartão de crédito também assistiu ao respectivo cancelamento, na maioria dos casos. Os poucos cartões que ainda funcionam têm um 'plafond' tão baixo que não cobre as necessidades básicas mensais", indicou.

Para este membro da comissão de gestão da AEAP [em exercício até às eleições previstas para o final do mês], as dificuldades nas transferências de divisas "trouxeram imensas consequências, designadamente a acumulação de dívidas das propinas [para os não bolseiros], uma vez que a maioria dos estudantes depende de auto-sustento. Nem mesmo as transferências para ajuda à família no exterior, serviço autorizado pela banca angolana, permitiram ultrapassar o problema".

"Face a isso, segundo os relatos escritos nas respostas ao censo, muitos estudantes tiveram ou estão em vias de ver as matrículas canceladas por falta de pagamentos. Outros não têm acesso às notas, ficando ainda outros sujeitos a repetir as unidades curriculares", prosseguiu.

E conclui: "Muitos estudantes têm visto a vida a andar para trás, projectos frustrados e o futuro ameaçado. Esta é uma situação que preocupa a AEAP. Preocupa-nos sobretudo, estudantes finalistas que se vêem forçados a desistir na recta final. Afinal, são quadros angolanos que estão em causa".

O Novo Jornal chegou à fala com um pequeno conjunto de alunos, dois bolseiros (um de Mestrado e outro de licenciatura) e um ex-bolseiro que acabou por suspender os estudos e começar a trabalhar para amealhar algum dinheiro para mais tarde voltar à universidade.

Com excepção para Garcia Matumona, todos preferiram falar sob condição de não ser identificados. Sem avançarem alguma razão em concreto para essa opção, foi nessa condição que se disponibilizaram a conversar com o NJ.

Um dos primeiros interlocutores assumiu ter desistido, "para já" do curso, depois de perder a bolsa com a qual veio para Portugal fazer a licenciatura em engenharia. Não explicou as razões porque a perdeu.

"Estava a fazer o primeiro ano de engenharia, mas acabei por perder a bolsa. Como quero continuar a estudar aqui, optei por fazer uma interrupção. Arranjei um emprego, regularizei a minha nova condição de trabalhador, e estou a amealhar algum dinheiro para continuar os estudos no futuro. Neste momento é impossível contar com apoio monetário vindo da família. Umas vezes conseguem fazer chegar algum dinheiro, outras vezes não. Mais vale não contar com isso", disse.

Um outro estudante, bolseiro, a fazer o Mestrado na área da saúde, reconheceu que, sem a bolsa, não conseguiria prosseguir os estudos.

"A bolsa é paga sempre a tempo e horas. Se assim não fosse seria muito complicado. As transferências estão muito, mas mesmo muito difíceis e, presentemente são raras. Alguns amigos que conheço, sem bolsas, andam sempre num corre, corre. Então a partir do meio do mês e até ao final é sempre muito difícil. O que tem valido é a solidariedade entre todos. Como a maioria vive em apartamentos alugados, com as despesas partilhadas, uns vão dando para os outros", adiantou.

Reconheceu também, que entre bolseiros e não bolseiros há uma diferença substancial. "A vida deles [não bolseiros] é mesmo muito mais difícil do que a nossa", elogiando ainda a atitude de algumas escolas, que não indicou, as quais "lá vão aceitando um ou outro atraso nos pagamentos", permitindo assim que alguns "prossigam, temporariamente os estudos".

"Connosco, bolseiros, esse problema das propinas, por exemplo, não se coloca. São pagas à cabeça e para todo o ano. Depois só temos de saber gerir o resto do dinheiro e, com algum que possa chegar a coisa compõe-se. Mas essa é também a vida normal da maioria dos estudantes em qualquer parte do mundo. Viver com pouco dinheiro. Agora sem nenhum é que é mais difícil", disse, deixando cair um sorriso.

As dificuldades causam também alguma angústia e ansiedade no momento em que se pensa na família e no país. É o caso de um outro, aluno de engenharia electrónica, que está em Lisboa com uma bolsa para licenciatura.

"Estou há quase dois meses à espera que a família consiga fazer chegar dinheiro para comprar o bilhete para ir a casa nas férias escolares. O problema não está só nas transferências. Arranja-se quase sempre alguém para trazer em mão. Mas a dificuldades está também no câmbio informal praticado para se arranjar lá dólares ou euros. Os bancos não têm e na rua aquilo está muito caro. As famílias também não têm assim tantas posses para ir à rua e comprar divisas", explicou.

E concluiu: "Queria muito ir visitar a família e os amigos agora no próximo Verão [aqui em Portugal], mas cada dia que passa a passagem fica mais cara. Ainda não sei como vai ser".

A título de exemplo, e segundo foi avançado por um dos alunos, as bolsas de estudo atribuídas pela Sonangol, pelo menos para Portugal, são de 600 euros (680 usd/113 mil kwanzas). Além daquele valor líquido para despesas correntes, a empresa estatal de petróleos assegura o pagamento integral das propinas e o alojamento [habitualmente em residências para estudantes].

No "pacote" inclui-se ainda uma única viagem de avião Angola-Portugal-Angola. Qualquer outra tem de ser suportada pelo aluno.

De acordo com a mesma fonte, "chumbar dois anos implica a perda da bolsa".