O Novo Jornal online tem vindo a descrever alguns dos principais focos de tensão, como a "fornalha" dos Kivu Norte e Sul, ou ainda a fogueira da instabilidade política que arde em permanência em Kinshasa. Mas há uma nova chama a fornecer calor à "panela de pressão" congolesa e que, geograficamente está mais próxima de Angola: o conflito étnico-tribal nos Kasai Central e Oriental, com impacto directo na fronteira entre os dois países.
Entre Maio de 2016 e Março deste ano já morreram quase meio milhar de pessoas em combates, emboscadas e horrorosos episódios de violência bárbara entre a milícia do antigo chefe tradicional Kamwina Nsapu e as forças de segurança da RDC, Forças Armadas (FARDC) e Polícia Nacional, resultando ainda deste cenário de guerrilha mais de um milhão de deslocados, segundo diversas agências da ONU, com um número por definir destes a escolherem Angola como refúgio.
Uma das realidades que melhor demonstra o cenário de caótica violência que vivem os Kasai são as mais de 40 valas comuns descobertas nos últimos dois meses com centenas de corpos, na sua maioria, admitem as agências da ONU e a sua missão permanente na RDC, a MONUSCO, vítimas da repressão das FARDC sobre os milicianos de Nsapu.
Mas, recorde-se, foram igualmente encontrados 42 polícias decapitados pelos milicianos, num turbilhão de sangue que contou ainda com a morte, um deles decapitado, de dois funcionários da ONU, de nacionalidades sueca e norte-americana, e a dispersão nas redes sociais de vídeos com imagens tenebrosas, o que está a criar um tremendo receio de descontrolo na comunidade internacional e, por razões evidentes, com Angola na linha da frente deste receio.
A Lunda Norte, onde se crê estarem actualmente dezenas de milhares de refugiados congoleses dos Kasai, aproveitando-se das ligações familiares e étnicas entre os dois lados da fronteira, é claramente onde o Governo angolano tem as atenções focadas, tendo, inclusive, criado dois campos de refugiados próximos da fronteira.
Como já admitiram publicamente as chefias militares e policiais angolanas, foram enviadas unidades para reforçar os contingentes já presentes na região, para eventual necessidade de ocorrer a um possível violação em massa das fronteiras, seja de populações em fuga, seja dos próprios milicianos por possível perseguição das forças de segurança ao dispor de Kinshasa.
Nas últimas duas semanas têm mesmo ocorrido encontros de altas patentes militares da RDC e de Angola na Lunda Norte para analisar a situação e definirem planos de contingência para um possível recrudescer do ambiente bélico que o país vizinho atravessa nas suas províncias dos Kasai, tendo mesmo sido relatados incidentes graves envolvendo unidades policiais de fronteira, como o SME e a Polícia de Guarda Fronteira.
A origem das milícias Kamwina Nsapu
A milícia, embora na RDC seja mais comum falar de milícias, no plural, visto que se trata de uma imensa área geográfica onde estas actuam, tendo apenas como denominador comum a acção ser justificada com o nome do antigo chefe tradicional, ou costumeiro, Kamwuina (ou Kamuina) Nsapu, foi organizada no início de 2016 por este líder tradicional quando as autoridades de Kinshasa começaram a criar-lhe dificuldades de reconhecimento à titularidade do seu poder, alegadamente por este não se rever nas políticas do Presidente Joseph Kabila.
Ao contrário de Angola, onde os chefes tradicionais, reis ou sobas, têm apenas um poder figurativo, embora efectivo nas questões de proximidade cultural e costumeira, na RDC são, efectivamente, investidos de poder administrativo e fazem parte da Administração Pública.
E o problema surgiu quando Kinshasa se opôs à investidura desses poderes a Nsapu, o chefe de linhagem histórica da região de Bajila Kasanga, que agrega dezenas de aldeias na província do Kasai Central, mas que, por ligações de sangue e de tradição, tem a sua influência alargada a outras regiões.
Kamwuina Nsapu é a denominação tradicional do chefe, cujo titular era Jean-Pierre Mpandi, que, depois de se revoltar contra o poder central de Kinshasa, com múltiplos ataques a instituições públicas, nomeadamente em Kananga, a capital provincial, causando avultados prejuízos e dezenas de mortos, foi ele próprio abatido num desses confrontos com as forças de segurança, em Agosto do ano passado.
A sua morte coincidiu com uma vaga gigantesca de violência exercida pelas suas milícias, que há quem admita ser constituída por mais de 20 mil "guerreiros", sendo que foi, também neste momento que foi dado um passo em frente no horror, porque passaram a atacar também as comunidades de outras etnias e com ligações de proximidade ao poder de Kinshasa, havendo mesmo cenas narradas envolvendo as comunidades "tchokwe" congolesas, com fortes laços sanguíneos do lado angolano, nas Lundas.
Ao mesmo tempo, em que a contabilidade dos mortos nos conflitos crescia, cresciam igualmente as fugas das populações das suas casas em todas as direcções, incluindo em direcção à fronteira com Angola, num redemoinho de terror que só há cerca de duas semanas assistiu a alguma acalmia e já se admite que o problema pode ter solução, embora a imprevisibilidade seja a palavra mais ajustada.
A solução pode estar ao virar da esquina
Para isso, Kabila enviou a Kananga, capital provincial do Kasai e coração deste universo costumeiro de Nsapu e das suas milícias, o seu ministro do Interior, Emmanuel Ramazani Shadary, para se sentar à mesa com os seus representantes.
A família de Nsapu que continua a reinar segundo os princípios costumeiros na região, tem um conjunto de reivindicações que, agora, o Governo de Kinshasa se viu obrigado a aceitar, especialmente quando a estabilidade em Kinshasa, onde também morreram nos últimos meses centenas de pessoas em confrontos de natureza política, depende da realização de eleições até final de 2017 e não é sustentável para o regime manter tantas "frentes" de tensão.
O ministro do Interior disse, citado pela radio das Nações Unidas, Okapi, à chegada a Kananga, que a sua presença na região teve como objectivo desenvolver conversações com a família de Nsapu, por forma a corresponder aos seus anseios e permitir a realização de um escrutínio "justo, livre e transparente" em todo o país, incluindo os Kasai.
Família exige exumar o corpo de Nsapu
Para a família Nsapu e para os seus seguidores, a primeira exigência e exumar o corpo e realizar cerimónias fúnebres conformes à tradição local e seguir o ritual costumeiro que corresponde a um chefe, o que não foi feito quando este tombou sob as balas das FARDC.
Por outro lado, as milícias já deixaram claro que têm de ser criadas condições para a designação de um novo chefe tradicional por parte da família reinante, cuja entronização resulta de uma formalidade a cargo do ministro dos Assuntos Costumeiros.
Ainda segundo as análises produzidas pelos media congoleses sobre este assunto, sendo natural que Kinshasa, depois de aceitar lidar de forma decisiva com este assunto, ele possa ser ultrapassado, permanece uma dúvida que pode conter alguns riscos.
Dúvida essa que passa pelas negociações com Kinshasa, visto que, de entre as razões para a sublevação de Kamwina Nsapu estavam questões de natureza autonomistas e de recusa de aceitar algumas instituições do Estado no seu "reino".
Para já, existe uma possibilidade para que a paz se instale no Kasai, tendo o Governo central aceitado como novo líder, sucessor de Nsapu, o seu filho Ntumba Mupala, que já apelou ao fim das hostilidades, à deposição das armas e ao regresso da ordem.
As dúvidas que subjazem resultam do facto de o pai do actual líder se ter revoltado também por razões autonomistas e não apenas por causa de formalidade ligadas à tradição local, para as quais obteve o apoio do seu povo (milicianos) e que agora o novo chefe não deve continuar.
Da resposta dos seus súbditos a esta alteração de política deve resultar a continuação da violência ou a normalização das províncias do Kasai e do Kasai Ocidental.