Desta vez foi no Texas, na pequena cidade de Uvalde, que, ao final da manhã de terça-feira, um jovem de 18 anos, que acabara de comprar duas espingardas automáticas (metralhadoras), avançou para a sua antiga escola e, disparando indiscriminadamente, ceifou a vida a 19 crianças e dois adultos, acabando pouco depois por ser abatido pelas forças de segurança.

Como acontece sempre que uma tragédia destas ocorre nos Estados Unidos, que um senador Democrata, Chris Murphy, se apressou a lembrar que apenas naquele país sucede com esta frequência e "mais vezes que dias tem o ano", sucedem-se as demonstrações de solidariedade e os pedidos de acção contra a lei das armas que, suportada numa norma Constitucional de 1791, desajustada, tem o mais poderoso lobby do mundo por detrás a garantir a sua intocabilidade e o, por conseguinte, negócio de biliões que lhe é inerente.

Joe Biden teve, provavelmente, a maior demonstração de incapacidade para alterar um quadro legal que tem sido responsável por sucessivos tiroteios nos Estados Unidos, "mais vezes que dias tem o ano", como disse Chris Murphy, ao erguer os olhos ao alto e perguntar, em nome do Criador, quando é que será possível avançar contra o lobby das armas, organizações que envolvem as mais capazes e organizadas sociedades de advogados, políticos e empresários.

Isto, porque o que se tem conseguido avançar, como sucedeu na Administração Obama, foi quase nada nas últimas décadas, havendo pouco mais a registar que a diminuição da capacidade dos carregadores das munições das armas automáticas, o que, no entender dos Democratas que propuseram esta alteração, não iria evitar estes tiroteios mas sim reduzir o número de vítimas subsequentes porque os atiradores teriam menos munições na arma.

Mas, como sempre sucede também, Joe Biden voltou a reafirmar que é chegado o tempo de "transformar esta dor em acção", admitindo que esperava não ter de lidar com estes massacres na sua Presidência, mas constatou com dureza que assim não foi e estes sucedem-se diariamente, "mais vezes que dias tem o ano", sem que pareça ser possível mudar algo de fundo no panorama norte-americano onde, na maioria dos estados, nem sequer é proibido menores, adolescentes de 11 ou 12 anos, pegarem em armas e estas poderem ser compradas sem qualquer restrição a partir dos 18 anos, independentemente do estado de saúde mental do indivíduo que as adquire.

Tudo, porque a Constituição, especialmente o seu famoso Second Amendment - Segunda Emenda, de 1791, referente aos Direitos sobre posse e uso de armas de fogo, que diz claramente que o direito ao uso e porte de arma não pode ser cerceado aos cidadãos, o que é fortemente criticado pelos movimentos anti-armas que sublinham tratar-se de uma norma constitucional criada para um determinado período histórico onde os Estados Unidos tinham procedido à sua Declaração de Independência há apenas 15 anos, a 4 de Julho de 1776, subsistindo ainda um cenário de fricção política e social e ainda estava em curso a famosa conquista do Oeste, cujas histórias deram o mote à maior parte dos westerns, os filmes de "índios e cobóis".

Joe Biden, que acabara de voltar da Ásia, onde esteve por três dias na Coreia do Sul e no Japão, e onde a questão da guerra esteve em permanência em cima da mesa, nomeadamente a sua declaração polémica de que os EUA vão apoiar directamente Taiwan em caso de invasão chinesa, e quando os Estados Unidos são o maior financiador e apoiante da guerra na Ucrânia, que já fez milhares de mortos, incluindo centenas de crianças, em casa tem de lidar com esta tragédia onde uma lei obsoleta sobre o direito ao uso e porte de armas permite a sua repetição "mais vezes que dias tem o ano".

"Quando, em nome de Deus, quando vamos confrontar o lobby das armas?!", perguntou e acrescentou: "Porque é que nós continuamos a viver com estas carnificinas? Porque é que deixamos isto continuar a siceder!?".

Esta é a pergunta que soa há mais tempo na sociedade norte-americana e para a qual não parece que possa surgir, num cureto espaço de tempo, uma resposta.

Momentos depois a vice-Presidente, Kamala Harris, que veio dizer que é preciso "coragem para agir" de forma a garantir que "isto nunca mais acontece", mas já o mesmo tinha sido dito quando há pouco mais de uma semana, a 17 de Maio, em Buffalo, Nova Iorque, 10 pessoas, na maioria negros, foram mortas num tiroteio que teve lugar dentro de um supermercado, por autoria de um supremacista/racista branco.

E a razão para que estes acontecimentos trágicos se sucedam foi explicada também pouco depois pelo senador Republicano, Ted Cruz, um dos mais acérrimos defensores do uso e porte de armas, e dos políticos norte-americanos mais próximos dos criminosos lobbys de defesa do negócio das armas, que, batendo na mesma tecla de sempre, veio dizer que não é a venda livre de armas que mata pessoas, é a falta de eficácia policial na perseguição e antecipação a estes actos.

Este senador pediu mesmo que a polícia seja mais pró-activa na detecção dos doentes mentais no momento em que estes se preparam para adquirir armas, prendendo-os de imediato, ignorando que o diagnóstico de perturbações mentais é da responsabilidade de médicos especializados e não de vendedores de armas em supermercados ou mesmo de polícias de giro.

Como sucedeu este tiroteio?

O jovem de 18 anos, autor do tiroteio que matou 19 crianças e dois adultos, professores, Salvador Ramos, a estudar na secundária da mesma cidade, chegou à sua antiga escola com as armas na mão, depois de se despistar, perto do local, com a carrinha que conduzia, e, cerca das 11:30 de terça-feira, disparou indiscriminadamente, no estabelecimento de ensino frequentado maioritariamente por estudantes de origem latina, de Robb, em Uvalde, estado do Texas, que é um dos mais permissivos ao uso de armas de fogo.

A maior parte das crianças mortas tinham por volta de 10 anos.

Segundo as primeiras declarações das autoridades policiais, Salvador Ramos foi abatido de seguida pelos primeiros agentes da polícia que chegaram ao local.

Para já, a polícia crê que Ramos, que disparou sobre a sua avó antes de sair de casa com as armas, que tinha adquirido no dia em que fizera 18 anos, agiu sozinho embora existam dúvidas sobre os motivos para este acto.

Mas o mais dramático desta carnificina na escola primária de Uvalde, além das vítimas, é que Salvador Ramos tinha anunciado, em diversos momentos, o que estava para vir, dizendo na rede social Instagram que um ataque poderia sucede a qualquer momento e que os "miúdos deviam estar atentos".

Há relatos que admitem que Salvador Ramos fora vítima de bullyng quando frequentou aquela escola e este poderia ser o seu momento de vingança.

Registo histórico

Entre 1982 e 2022 ocorrem 128 assassínios em massa co dezenas de mortos, sendo 68 destes perpetrados por indivíduos de raça branca, afro-americanos 21 e latinos 10.

Os três mais mortíferos ocorreram em Las Vegas, em 2017, durante um concerto musical, com 58 mortos e 546 feridos, em Orlando, num nightclub, em 2016, com 49 ortos e 53 feridos, e em Blachsburg, Vírginia, na UNiverdidade local, 2m 2007, com 32 mortos e 23 feridos.

Esta a lista dos 10 tiroteios mais graves, com o número de mortos e de feridos, na qual já consta este de Uvalde:

Las Vegas Strip (Las Vegas, NV, 2017) 58-546; Orlando nightclub (Orlando, Florida, 2016); 49-53; Virginia Tech (Blacksburg, Virginia, 2007) 32-23; Sandy Hook Elementary (Newtown, Connecticut, 2012) 27-2; Texas First Baptist Church (Sutherland Springs, TX, 2017) 26-20; Luby's massacre (Killeen, Texas, 1991) 24-20; San Ysidro McDonald's (San Ysidro, California, 1984) 22-19; El Paso Walmart (El Paso, Texas, 2019) 20-26, Uvalde elementary school (Uvalde, Texas, 2022) 19 -2; Marjory Stoneman Douglas High School (Parkland, Florida, 2018) 17-14.

Mas o mais famoso até hoje em todo o mundo foi o que ocorreu na Escola Secundária Columbine, em Littleton, no Colorado, em 1999, porque foi o motivo para um documentário que teve grande sucesso, realizado por Michael Moore, denominado "Bowling for Columbine".

Esta mortandade teve lugar a 20 de Abril de 1999, quando dois estudantes entraram na escola, ambos com problemas de sociabilização, e dispararam indiscriminadamente, percorrendo várias salas de aula, matando 13 pessoas e fazendo mais de 20 feridos, antes de se suicidarem.

Á época foi o mais devastador tiroteio que ocorrera numa escola secundária dos EUA e dele partiu um debate nacional com foco na urgência de alterar a legislação referente ao uso e porte de armas nos Estados Unidos. Nada mudou deste então e já lá vão 23 anos.

Foram, igualmente, criados centenas de grupos em todo o país com o objectivo de gerar um movimento nacional de apoio ao controlo das armas, mas, apesar de existirem esses grupos, de serem cada vez mais figuras públicas, do cinema à literatura, do desporto à política a dar a cara por esta luta mas, sem excepção, é sempre o poderoso lobby das armas que vence esta batalha quando o Congresso debate o assunto.