A permanência de práticas que poderão ter feito algum sentido num outro tempo, muitas vezes, num outro espaço, e a que, umas vezes por respeito, mas a maioria delas por puro oportunismo, alguns se apegam, porque "às nossas tradições havemos de voltar", acabam por dar origem a anacronismos que descambam, na maioria das vezes, em enormes, e inaceitáveis, injustiças. É claro que o presente é fruto de uma trajectória. E que é bom que haja objectivos para que a caminhada que encetamos nos leve a algum lugar. Mas, num mundo em acelerada transformação como aquele em que vivemos, é fundamental que limpemos o nosso pensamento de todas essas amarras, para que ele, limpo e poderoso, possa encontrar os melhores caminhos, sem barreiras impostas pelos episódios do passado, a grande maioria deles retransmitidos fielmente de geração em geração, como uma cabacinha de fel, que temos que fazer provar aos vindouros, para que eles não se esqueçam quem têm que odiar. Ou desprezar. Ou pedir contas. Por procuração.
Um amigo meu teve a infelicidade de ver a sua esposa, há décadas sua companheira, falecer repentinamente. A dor foi imensa. O sentimento de desamparo por se sentir à deriva, qual barco que perde a âncora em mar revoltoso, apossou-se dele. Felizmente, os filhos, já crescidos, ali estavam para formar um núcleo que pudesse enfrentar o infortúnio. E uma parte da família, o pequeno núcleo que existe para ajudar, apareceu para percorrer com ele esse transe. Depois das formalidades rituais, a que não se pôde escudar, chegou-se à véspera da cerimónia final. E aí aconteceu o impensável. Umas tias da malograda convocaram-no para uma reunião. Havia exigências a fazer, pois, no início da longa relação, não tinha havido o indispensável "pedido". Não se tinha consumado a transação comercial que tal acto, cada vez mais desprovido de sentido, obrigava. E foi-lhe apresentada uma lista de produtos e exigências que ele tinha que cumprir, sob o risco de elas impedirem a saída do féretro para o cemitério. Atarantado, claramente sem forças para oferecer qualquer resistência, mesmo no quadro mais absurdo, foi o meu amigo comprar um anel, participar numa tétrica representação onde pediu uma mão, já falecida, colocando um frio anel num dedo que já apresentava sinais de rigidez mórbida, rodeado de abutres, e caixas de bebidas, e fatos, e dinheiro. A realidade ultrapassou, claramente, a mais absurda das imaginações. A mãe da falecida, que tinha sido mantida à margem de todo este inqualificável processo, quando dele tomou conhecimento, exigiu a devolução de todos os bens, e destratou quem o maquinou. Mas o mal estava feito.
Há tradições a que, definitivamente, não devemos voltar.