O centralismo democrático foi usado por gente pouco séria que em vez de promover a cidadania e a participação popular, transformou o povo em súbditos das elites dirigentes. As empresas do Estado de produção e de serviços foram mal geridas e colapsaram, criando-se uma situação de penúria de bens de primeira necessidade e insatisfação popular. Os direitos cívicos e políticos foram desprezados, mas é desonesto não reconhecer os avanços, nesse período, dos direitos económicos e sociais, principalmente no domínio do emprego, da educação e da saúde.

No princípio dos anos 90 o modelo de desenvolvimento estava esgotado. À prática que afectou a economia e a sociedade, juntou-se o colapso do bloco socialista ao qual Angola se havia aliado. Também nos países do então chamado socialismo real as práticas de governação e de desenvolvimento padeceram dos males identificados para Angola. Visitei a antiga União Soviética pela primeira vez em 1984 e fiquei chocado com o retrato da sociedade de um país que era a segunda potência mundial na época: carência de bens que eram verdadeiro fétiche para os jovens, como as calças jeans que levavam raparigas a prostituírem-se, controlo obsessivo da polícia política sobre os cidadãos e ausência de liberdade de expressão e de acesso à informação. Vaticinei então que tal regime estava por um fio, e não me surpreendeu o seu desmoronamento.
Angola iniciou nessa altura uma tripla transição: da guerra para a paz, de um sistema de partido único para o multipartidarismo e democracia e de uma economia planificada e centralizada para uma outra de mercado. De todas elas, só se pode dizer com propriedade que uma tenha sido completa - a da guerra para a paz, ainda que depois de mais cerca de 10 anos de guerra civil continuada. No que se refere à democracia, as dificuldades começaram logo com o modelo que haveria de ser conformado pela Lei Constitucional de 1992 que, entre outros elementos menos positivos, previa que o vencedor das eleições disporia da totalidade do poder político (the winner takes all). Hoje não parece haver dúvidas de que se o processo de transição para as eleições gerais tivesse sido mais longo, e se tais eleições gerais tivessem sido precedidas por eleições locais, haveria uma certa partilha de poder e uma maior probabilidade de se forjar a reconciliação a um nível em que a interação fosse mais fácil. O recomeço da guerra que se seguiu pode, entre outras razões, ser explicado também por essas decisões.

De acordo Arend Lijphart, podemos referir dois entendimentos de democracia: o modelo maioritário (ou de Westminster), que se coaduna com sociedades relativamente homogéneas do ponto de vista cultural, religioso ou etnolinguístico, onde o processo de construção da nação está consolidado; e o modelo consensual, mais apropriado às sociedades pluralistas e diversificadas. Nestes casos, a ausência de uma cultura democrática e de debate, de tolerância e de respeito pela diferença pode sugerir que se opte pelo consenso ou pelo compromisso como complemento da disputa e da confrontação, sem que isso signifique subalternização do debate necessário à construção da cultura democrática. Angola é, ainda, um conglomerado de minorias e em democracia qualquer minoria tem de ver reconhecidos os seus direitos cívicos e políticos, bem como o direito de fazer parte do povo. De outro modo, a democracia torna-se impraticável, introduzem-se elementos de instabilidade e as maiorias relativas podem perder legitimidade. Ora, a opção pelo modelo de Westminster, agravado pela atipicidade da Constituição de 2010, tem dificultado imenso a construção da democracia.

A transição para uma economia de mercado também tem sido feita a duras penas. Hoje a economia de mercado, com maior ou menor regulação, foi adoptada em quase todo o mundo, incluindo por países como a China e Cuba. Em Angola essa transição tem sido prejudicada pela persistente intromissão do Estado na economia, em benefício das elites ligadas ao partido no poder. Essas práticas estão presentes no modo como se operacionalizam os créditos bancários, que em última análise podem ser considerados como transferências do Tesouro para tais elites, na continuação de planos económicos dirigidos por ministérios, na insistência em investimentos públicos na produção agrícola ou no comércio, na construção de centralidades, entre outras práticas. Em consequência, o desenvolvimento local e as respectivas economias continuam a marcar passo. Como era previsível, passadas as eleições a desvalorização do kwanza já vai em 20% em relação ao dólar.

Uma quarta transição está ainda longe de concluída - a de um Estado centralizado e concentrado para autarquias locais eleitas pelos cidadãos, o que é agravado pela excessiva subordinação ao partido no poder. Nos anos 2000 o Executivo aprovou o Plano Estratégico de Desconcentração e Descentralização, que previa a transferência de competências para as Administrações Municipais (o que tem sido feito a conta gotas) e a institucionalização do poder local, com nova abordagem sobre as instituições do poder tradicional, o reconhecimento das organizações dos cidadãos ou da sociedade civil e a criação de autarquias, sempre adiadas sem justificações convincentes - e a derrota do MPLA em Luanda já deu a perceber que continuarão a sê-lo.

Escrevi na crónica anterior que um novo paradigma, como o vagamente anunciado pelo Presidente João Lourenço no discurso sobre o Estado da Nação, terá de estar alinhado com a participação dos cidadãos e a democracia, a realização urgente de eleições autárquicas e a aposta, no curto prazo, numa economia baseada sobretudo em recursos internos, numa perspectiva de sustentabilidade social, económica e ambiental. Todos estes elementos podem integrar o pacto que diversas personalidades da sociedade civil vêm propondo, e aos quais podem ser agregadas questões como um novo olhar sobre as instituições do poder tradicional, como previa o Plano Estratégico referido; acções concretas no campo do desenvolvimento local; a equação do desafio demográfico tendo em conta o enorme desequilíbrio entre o crescimento da população e o da economia; e finalmente os efeitos das mudanças climáticas. É disso que o Presidente João Lourenço deve estar ciente quando se fala de pacto de convivência democrática - e não pensar numa "geringonça" que ninguém propôs. Para que todos os angolanos possam participar na construção de um país independente e bom para se viver.