Assim pensando, bom patriota deve ser aquele cuja acção se traduz na luta permanente para que a pátria não esteja ligada à morte, mas sim à vida e ao bem-estar, no seu sentido mais amplo, de todos os cidadãos. Se aceitarmos o conceito de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, baseado na ideia de liberdade de escolha dos cidadãos para que tenham as oportunidades e capacidades de viverem longamente e com qualidade; se percebermos que o desenvolvimento humano não está directamente relacionado com a detenção de recursos financeiros avultados, mas sim com a satisfação das pessoas com o modo como vivem a vida ou procuram condições para uma vida digna e saudável; perceberemos que não fazem sentido as frequentes alusões a perigos miríficos, quando as preocupações dos cidadãos são bem diferentes.

Tenho tentado relacionar a qualidade do desenvolvimento humano com justiça social, traduzida no equilíbrio entre os chamados direitos humanos fundamentais, ou de primeira geração, isto é, os direitos cívicos e políticos, e os direitos de segunda geração, os económicos, sociais e culturais, a que se devem juntar, os direitos a um ambiente são. Esta fórmula, aparentemente simples, mas não simplista, pode traduzir um programa de governo ou um programa de desenvolvimento a médio e longo prazo atractivo para a generalidade dos cidadãos.

Nesta perspectiva, analisar o Estado da Nação pode significar fazer o balanço da evolução desse conjunto de direitos plasmados na Constituição de 2010 - é bom lembrar -, não em função do cumprimento de metas, frequentemente fantasiosas, mas do estado de satisfação dos cidadãos em relação à globalidade desses direitos. Estão os cidadãos, na generalidade, bem alimentados e nutridos?

Têm os cidadãos, de modo geral, acesso a cuidados primários de saúde e confiam no sistema ou serviço nacional de saúde do País? Sentem-se os cidadãos confortáveis com o sistema de educação e ensino, que não precisa de estar entre os melhores do mundo, mas em níveis aceitáveis de acesso para que todo e qualquer indivíduo possa ter perspectivas de vida digna? Em que medida os cidadãos se sentem livres, informados, ou com possibilidade de se reunirem ou associarem livremente e fazerem as suas escolhas?

Vejamos, ainda que de modo ligeiro, como se pode responder a tais interrogações. Os dados de 2020 indicam uma subida do que se poderia chamar Produto Agrícola Bruto (pouco mais de 4%), mas isso não teve reflexos na alimentação dos angolanos em geral. Porque se importam menos alimentos (passamos de um gasto de quatro mil milhões de dólares anuais para cerca de metade em cinco anos, diferença essa que foi compensada pelo recente aumento ligeiro), o balanço alimentar não poderia ser positivo. Com a seca e as sucessivas estiagens, a tendência será para o agravamento, apesar das solidariedades que, forçosamente, não evitam a tragédia que as imagens vindas do Sul nos transmitem.

O défice de alimentos é uma questão estrutural que se deve aliar a vários outros factores de crise. Insistir em soluções de remendo, procurando resolver gargalos conjunturais, é deitar dinheiro fora. Quase vinte anos de reconstrução nacional assim o atestam. Actualmente a nossa superfície anual cultivada é de cerca de cinco milhões de hectares, para alimentar uma população que excedeu os 30 milhões. Nos primeiros anos da década de 70 eram cultivados cerca de quatro milhões de hectares (menos um quinto) para uma população que andaria à volta de sete a oito milhões (cerca de seis vezes menos), em números aproximados devido à crónica debilidade estatística.

Esta situação poderia não ser problemática se tivesse havido um avanço tecnológico que permitisse aumentos significativos de produtividade, o que não foi, nem é, o caso. Na verdade, mais de 70% da superfície cultivada é trabalhada ainda com a enxada, uma percentagem semelhante à dos mencionados anos 70, o que exige um enorme dispêndio de energias que os geralmente idosos agricultores não possuem. O consumo de fertilizantes por habitante era nesses anos 70 de 1,58 quilos (25,52 na África do Sul) e hoje temos 7 quilos para Angola contra 67 quilos da Zâmbia (!). Deste modo, as produtividades e as produções têm de ser forçosamente baixas.

É isto que explica a estagnação económica dos municípios do interior, o que aliado aos precários ou inexistentes sistemas de educação e de saúde locais, explica também a migração dos jovens das áreas rurais para as cidades, pois tais jovens não se sentem nada atraídos pela estagnação tecnológica da agricultura. Chegados aos centros urbanos sentem-se frustrados por não conseguirem empregos, nem centro de ensino ao seu alcance, nem serviços sociais básicos. São esses jovens frustrados - aqui, sim, aplicam-se as infelizes palavras de José Eduardo dos Santos numa célebre entrevista à SIC portuguesa - os principais actores da onda de crimes que se verificam, principalmente em Luanda e Benguela, como o atestam a maioria das reportagens da TPA e da Zimbo e pode ser confirmado pelos órgãos policiais.

Este quadro não poderá ser alterado com medidas paliativas, mas apenas com uma profunda revisão da visão de desenvolvimento e das políticas públicas, traduzidas em Orçamentos Gerais do Estado amigos da luta contra a pobreza e da diversificação efectiva da economia, com base na promoção e apoio a micro e pequenas empresas nos municípios, para que o círculo vicioso da pobreza e da fome se transforme num efectivo círculo virtuoso do desenvolvimento local. Um dos eixos de um orçamento deste tipo deve ser a criação ou o reforço de capacidades das instituições públicas e privadas locais. É preciso que se entenda, de modo definitivo, que o investimento em capacidades nos sectores, da educação, da saúde e da agricultura é mesmo investimento e não uma mera despesa. É isto que é urgente e prioritário.
Direitos cívicos e políticos ou económicos e sociais só poderão ser concretizados com cidadania e com instituições fortes sustentadas por cidadãos patriotas e solidários. Estejamos a falar de instituições públicas ou privadas, de partidos políticos ou de organizações da sociedade civil. A convivência e confluência de interesses nobres são vitais para que uma nação não falhe como têm falhado tantas.

Finalmente, solidarizo-me com quantos, indivíduos e instituições, como a CEAST, curiosamente a única religiosa, manifestaram perda de confiança na justiça por interferências políticas. Este foi o facto político mais importante no mês, e não pode ter sido tratado como foi pela comunicação social pública, que insiste em não permitir que os angolanos tenham direito a uma informação isenta e de qualidade. n
PS - Na minha última conversa (Novo Jornal de 17/9/21) mencionei, por lapso, que a minha fonte sobre uma determinada opinião era o semanário Expansão de 10/9/21. Na verdade, a fonte era o próprio Novo Jornal com a mesma data. Pelo lapso as minhas desculpas aos leitores, bem como a todas as partes que se sentiram lesadas.