Muitos de nós, estou seguro disso, têm no seu íntimo pessoas que nunca morrem. O Senhor chama, elas partem, mas nós arranjamos maneira de tê-las sempre connosco. Sentimo-las, inspiram-nos, amparam-nos, levamo-las para todo o lado, conversamos com elas, enfim, vivem connosco. Mesmo concedendo que quando essas pessoas partem deixamos de poder trocar um aperto de mão ou um abraço, tenho a convicção de que essas pessoas deixam alguma coisa em nós. Para mim, o Gustavo é uma dessas pessoas. Faz um mês que ele partiu, mas sinto que deixou muita coisa em mim.

No velório dele, disse que gosto de todos os meus irmãos da mesma maneira, mas que gostava dele de maneira diferente. Nas conversas que a nossa família foi tendo nos dias que se seguiram concluímos que eu não era o único a pensar assim. O meu sobrinho e afilhado, Tiago, o caçula do Gustavo, definiu da melhor maneira possível as relações entre irmãos: "São todos irmãos, nem mais, nem menos, mas entre os irmãos há os irmãos dos irmãos". Os meus irmãos gostam de todos os irmãos da mesma maneira, mas, tal como eu, gostavam do Gustavo de maneira diferente. Por conseguinte, eu apenas fui o porta-voz de um sentimento transversal a todos. "Ditto" para os nossos pais, que adoravam os filhos todos com o mesmo amor, mas que gostavam do Gustavo, um"kituxi", de maneira diferente.

No dia 21, quando o fomos enterrar, aceitei que o tínhamos perdido. Por outro lado, senti que ele continuaria connosco. Há muito tempo que aprendi aceitar a "transição" com alguma resignação, mesmo quando dói, como está a acontecer agora.

Quando preparávamos as exéquias do Gustavo foi decidido que eu iria apresentar a biografia dele. Preparei-me para fazê-lo com a mesma diligência com que ele fazia coisas para mim. Era assim desde que nos conhecíamos: ele procurando estar por dentro do que era a minha vida, e eu procurando estar por dentro do que era a vida dele. A disponibilidade para nos ajudarmos e para participarmos da vida um do outro vem de muito longe; vem desde que éramos crianças. Vão para aí 40 anos, o meu pai, José Manuel da Costa, contou-me uma história que teria acontecido, tinha eu 3 ou 4 anos, o Gustavo, 6 ou 7. Todos os dias, durante um ano, quando percebesse que o Gustavo tinha chegado da escola punha-me em posição de ser eu a levantar a tramela que trancava a porta e fazer-lhe a primeira pergunta: "Gustavo, passaste?" Fiz isso todos os dias, durante o seu primeiro ano na escola. Segundo o meu pai, o Gustavo respondia sempre da mesma maneira. "As aulas ainda não terminaram, mas vou passar". Dois ou três anos depois, quando comecei a estudar, na Escola 8, a mesma onde ele estudava, o Gustavo devolveu-me a pergunta; "Lilo, passaste?" Fazendo-me de bom aprendiz, respondia-lhe de cartilha: "As aulas ainda não terminaram, mas vou passar". Essas e outras nuances, próprias de irmãos, ajudaram a cristalizar a minha adoração pelo Gustavo. Com o tempo, fui indo mais longe, entrando silenciosamente no que era o seu espaço geracional. Sem que ele percebesse - naquele tempo, mais velho era mais velho, miúdo era miúdo, ou, como se diz hoje, galinha não seguia pato, fiz-me amigo dos amigos dele. Uns, 10 anos mais velhos do que eu; outros vinte, outros trinta anos, outros quarenta, pois o Gustavo tinha amigos de todas gerações. E alguns dos mais novos que ele foi conhecendo, são meus amigos. Voltando aos mais velhos - primeiro o que é primeiro, a minha tendência natural para me fazer amigos dos amigos dele, vem desde o tempo em que vivíamos no Bairro Operário, onde passámos o segmento mais significativo das nossas infâncias. Aí pela primeira vez, me fiz amigo de todos que eram amigos do Gustavo. Na verdade, uns vieram a ser mais do que isso. Acabaram sendo nossos irmãos, de outras mães. Cito de memória, os filhos da D. Aia.

A história repetiu-se em 1969, quando nos mudamos para Silva Porto, (Kuito) e depois quando entrei para o jornalismo, profissão que abracei por influência dele. O tempo fez-me amigos dos novos amigos dele. Isso repetiu-se de forma natural em todos os cantos por onde o Gustavo passou. Os manos Victor Aleixo e Ramiro Aleixo, e o Victor Silva, meus primeiros mestres, e que com o Gustavo entraram para o "Jornal de Angola" quando Angola ainda não tinha um ano como país independente, tornaram-se filhos de casa, logo, nossos irmãos.

A sua passagem pelo Jornal de Angola, Jornal Desportivo Militar, JDM, Revista Golo, Record, África Jornal, CNDI, Expresso, pontualmente a BBC e o Novo Jornal, fez dele um respeitado jornalista e influente líder de opinião, coisas de que me orgulho e que são fonte de inspiração para mim. Essa condição de utente do espaço público -ele não se revia como figura pública - ensinou-me a "partilhar" o Gustavo com outras pessoas. De todas as pessoas que ele trouxe para a minha vida, nutro um carinho especial pela minha cunhada Paula Bessa, e pela família que criaram: obrigado, Gustavo.

O que fazia do Gustavo uma pessoa especial para mim não era só o facto de ele trazer para a minha vida pessoas boas como as que citei e outras cujos nomes perderam-se (temporariamente) no turbilhão que nos varre desde o dia 19, data do seu falecimento. Era, sobretudo, a preocupação que tinha para comigo, para com a nossa família, e também o seu desdém por extremismos. Essa capacidade de influenciar positivamente a minha vida não mudou, nem mesmo depois da vida me ter levado para mais de 10.500 quilómetros de distância, o que aconteceu há 27 anos. O meu pai, José Manuel da Costa, era o patriarca, o líder da família ; o Gustavo, o filho varão, o que me "puxou", era o meu ídolo. Foi a pessoa mais influente na minha vida. Como ele não era de despedidas, eu também não me vou despedir. De resto, como me iria despedir de uma pessoa que continua comigo? Devo-lhe, todavia, um reconhecimento do tamanho do amor com que iluminou a minha vida desde que nasci.

Gustavo, obrigado, muito obrigado. Do fundo do coração.