O ano de 2021 foi o ano em que o país voltou a ser colocado diante de uma situação em que as elites do poder não podem continuar a reivindicar para si a titularidade de uma riqueza que, afinal, não lhes pertence porque não a criaram no passado para poderem no presente sustentar os seus encargos e alimentar os seus vícios.
O ano de 2021 foi também o ano em que ficou demonstrado que continuamos ainda muito longe de alcançar a tão desejada e necessária democratização da distribuição da renda nacional.
Terminamos assim o ano 2021 com a sensação de termos assistido a uma nova concentração da pouca riqueza existente em Angola num restrito núcleo de empresas e, por isso, já há quem pense que estamos agora diante do "ensaio da cegueira" do "país" que "vai de Carrinho". Algum mal nisso?
Depende do ângulo de análise da questão. O mercado é uma via verde para as empresas demonstrarem a sua capacidade de afirmação. Logo, desse ponto de vista, nenhum "carrinho" deve ser discriminado ou impedido de participar na corrida.
E se essa corrida concorrer para a criação e promoção de muitos, diversificados, competitivos, transparentes e bem geridos grupos empresariais angolanos, então encantados da vida, "lá vamos nós, cantando e rindo", como soava o hino da Mocidade Portuguesa.
Mas, se a corrida enveredar pela via de uma monopolização conducente à celebração de uma vitória traída, então é avisado não ficarmos embriagados e contagiados com os dourados anos de favorecimento de negócios com que, num passado muito recente, foi brindada a família Gupta, na África do Sul.
Protegidos pelo antigo Presidente Jacob Zuma, durante o seu reinado, os multimilionários indianos puderam dominar os negócios em todas as esferas da administração pública daquele país. Em tempo de balanço, a desgraça não tardou, porém, a bater-lhes à porta.
Do mesmo modo, passou a tirar o sono também a Jacob Zuma e à sua família. Uma das lições a reter desta deriva é o amargo desfecho que a vida do antigo Presidente sul-africano está agora a ter diante da justiça de um país que não é propriamente uma justiça manietada pelo poder político.
Por aqui, sem dar muitas voltas à cabeça, basta também ver o que está a acontecer com aqueles que, tendo no passado sido igualmente protegidos por um antigo Chefe de Estado, protagonizaram a primeira vaga monopolista em Angola.
Por isso, nunca é demais insistir na montagem de uma reengenharia governativa suportada por uma mudança de comportamento das elites do poder, que promova a participação dos cidadãos na construção de uma nova arquitectura na justiça e estimule o respeito pela equidade na distribuição da riqueza social.
Não sendo isso o que está a acontecer por aqui, o que os cidadãos gostariam era de não voltarem a ver o novo ano terminar envolto em nebulosa no domínio da aquisição de determinados activos do Estado ou da adjudicação de determinadas empreitadas públicas.
O que os cidadãos gostariam era de não voltarem a ter um Estado atado a práticas que atentam gravemente contra a transparência e o rigor na gestão das finanças públicas.
O que os cidadãos não gostariam era de não voltarem a ser colocados na frigideira para serem devorados por novos vampiros.
É certo que a viagem "de carrinho" feita na última "Black Friday" de 2021 pode sempre ser justificada pela necessidade que o Estado tinha de se livrar dessa dor de cabeça que se chama BCI.
Mas, ao fazê-lo, não deixa de ser preocupante constatar que esse mesmo Estado ainda não se libertou de práticas que, através do tráfico de influências, acabam por dar cobertura à corrupção política com o envolvimento de altos funcionários públicos em negócios privados.
É claro que compreendo e até defendo que, num outro prisma, o Estado tenha de pôr fim à sua presença em alguns negócios de avental, que, alimentando os vícios e a opulência de uma nova clientela, deveriam fazer parte dos esqueletos dos cemitérios. Porquê?
Porque o Estado não poderia nem pode continuar a acoitar negócios de avental, nem continuar a ser o pai de todos. Porque o Estado não poderia nem pode continuar a desconfiar da sociedade, a odiar a liberdade económica e a massacrar a iniciativa privada.
Porque o Estado, com o seu tortuoso intervencionismo na vida das empresas, não poderia nem pode continuar a contribuir para o genocídio do da economia nem contimuar a iludir os cidadãos com sonhos grandes, que, afinal, mais não resultam senão em vidas muito pequenas.
Mas, porque é que o Estado não pode ainda continuar a enveredar por essa via?
Porque perante agentes públicos que não se dão ao respeito no mundo dos negócios, os privados - conhecedores das suas fragilidades éticas e morais e das fraquezas do Estado - tendem a tratá-lo como o guarda costas de contas falidas.
A culpa, é claro, não é dos beneficiários desta e de outras negociatas, mas de quem acha que, como escreveu Samuel Butler, "qualquer idiota é capaz de pintar um quadro", esquecendo-se, porém, de que "só um génio é capaz de o vender".
A culpa é do Estado que, querendo tomar conta de tudo e de todos, se esquece que a questão de fundo não é apenas resultante do seu envolvimento absurdo, ineficaz e incompetente em negócios de avental.
A culpa é do Estado que se esquece que a questão de fundo é a da imagem de um país que afugenta quem goste de olhar para o mercado guiado pelo princípio do primado da liberdade da iniciativa privada sobre a burocracia e a ineficiência.
A culpa é do Estado que, subjugado à monopolização de negócios alavancados com dinheiros públicos, se esquece que este apadrinhamento agride o princípio da livre concorrência, infunde a desconfiança na economia e lança o descrédito no mercado.
A culpa é ainda do Estado que, dominado pelo poder dos donos dos monopólios, se comporta como cúmplice de um encapotado processo de entronização de novos "imperadores" em substituição dos antigos senhores.
Nestas circunstâncias, como adverte o Prof. Alves da Rocha num excelente artigo que publica esta semana no Expansão, não é difícil adivinhar que "a acumulação primitiva do capital muda de mãos".
Nestas circunstâncias, ao termos políticos e governantes com acesso a informação privilegiada envolvidos em negócios privados ou do Estado, é a promiscuidade que triunfa sobre a transparência, é o tráfico de influências que se impõe sobre a isenção e é a restante classe empresarial que não consegue sair do bloco operatório.

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