Depois de ter permanecido durante três meses em viagem pela antiga Europa do Leste, o autor do lendário "Relato de um Náufrago", concluiu que "era uma falta de senso comum esperar que "a cortina de ferro" fosse realmente uma cortina de ferro".

Por aqui, depois de termos viajado durante várias décadas e de termos sido sequestrados por um seguidismo político atroz e por uma assustadora miséria espiritual, acabámos por concluir também que a "propaganda tenaz" em torno da mitologia de certas "cortinas" tem "mais força de convicção do que todo o sistema filosófico".

Por aqui, como adverte o Prémio Nobel da Literatura de 1982 com "Cem Anos de Solidão", acabámos por assistir ainda à derrota do "senso comum até ao extremo de a pessoa tomar as metáforas à letra".

O que, naquela monumental crónica testemunhal de viagem pelo antigo enclave comunista - desde a antiga União Soviética, passando pela RDA e Checoslováquia até à Hungria - descreve Gabriel Garcia Márquez, não é, por isso, mera coincidência com o que se passa por aqui. Não, aquele testemunho, com mais de sessenta anos de idade, é a nossa realidade actual.

Descascando-a, estaremos diante de um passado que se arrasta por um presente que aposta num estranho modelo capitalista que insiste em permanecer ancorado às barbatanas do socialismo.

Esta é a realidade tragicómica de uma governação política, que não sendo nem peixe nem carne, anda agora a reboque de uma elite que passa a vida a violar sistematicamente as regras de trânsito.

Ziguezagueando à esquerda e à direita, durante mais de três décadas andamos assim a rasurar o código da estrada, carregando às costas o fardo de um Estado atrasado, igualitarista, castrador, paternalista e despesista.

Para pôr em prática a chamada acumulação primitiva do capital, a partir de 2000, decidimos politizar o investimento privado - estrangeiro e nacional - e impor aos investidores a partilha administrativa dos lucros com um selecto grupo de uma elite política e militar escolhida a dedo por um supremo guia espiritual.

Essa prática está agora a ser aproveitada por alguns oportunistas para arremessar artifícios divisionistas que, em última instância, como advertia o nacionalista Adolfo Maria, podem concorrer para "a destruição do frágil cimento nacional" e para "desperdiçar pessoas, energias e esperanças até ficarmos apenas com um deserto só com os mirrados arbustos da ganância e da mediocridade".

Essa prática, ao gerar a subversão da lógica de mercado por via da protecção oligárquica de uma burguesia local saloia que, ao ser impreparada, improdutiva e artificial e ao florescer como arrendatária dos recursos públicos, acabou por tornar por aqui cada vez mais turvo o ambiente de negócios e por fazer a vida negra aos investidores privados.

Essa prática, ao deixar em estado de choque quem, vindo de fora, pretendesse olhar para Angola como um mercado atractivo para investir, acabou por ser uma das causas do afugentamento de muitos homens de negócio que, por aqui, aspiravam a contribuir para a criação de emprego e geração de riqueza.

À boleia da deslocação do conceito clássico do património para um neopatrimonialismo entregue à irracionalidade de uma elite parasitária, incompetente e devoradora, por aqui, os passos continuaram a ser alegremente trocados.

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