Estava-se em guerra, e era preciso, com a "escolta de mentiras", enganar os nazis. Também já vivemos em guerra e, por isso, temos perfeita noção da crueldade das mentiras e da sua capacidade de corroer a história.
Há quase 20 anos que, felizmente, vivemos em paz, mas a "escolta de mentiras" do tempo da guerra, em vez de ter sido sepultada com as suas ossadas, está agora a ser substituída por uma nova e mais perigosa escolta de... medos.
Chamam-lhe a escolta dos "silêncios construtivos", guarnecida por uma escalada de assombrações políticas a que não escapam actores de todos os quadrantes políticos e sociais.
Ministros, políticos e parlamentares do regime e da oposição, juízes, professores universitários, médicos, jornalistas e altos funcionários públicos vão a reuniões com o peito cheio de ar, mas, uma vez lá dentro, facilmente se deixam sequestrar por um medo aparentemente invisível.
Nas reuniões da cúpula dos partidos, nas sessões do Conselho de Ministros ou no Parlamento, a maioria deles tende a comportar-se como seres embalsamados, que preferem enterrar a cabeça na areia. Compreendo-os...
Quem por lá se tenha habituado a estar protegido pela couraça da impunidade nunca mais quer deixar de sentir o cheiro de majestático reino.
Basta ver como aqueles que, depois de apanhados com a mão na massa e corridos do Governo, se apressam a refugiar-se no Parlamento.
Basta ver como os "boys" da oposição também se digladiam, não para fortalecer os seus partidos, mas para abocanhar uma senha que lhes permita, igualmente, apanhar um lugar no Parlamento e, consequentemente, usufruir de privilegiado estatuto.
Quem por lá, por decreto de nomeação, tenha provado o chupa-chupa também nunca mais quer deixar de o saborear. É por isso que, embrenhados em jogos de sombras, são inúmeros aqueles que, comodamente instalados na poltrona do poder, se apressam a julgar-se cidadãos de primeira classe.
Seria bom que assim não fosse, mas foi sempre assim. Foi neste ambiente de "hipocrisia popular" que, ao longo de décadas, as elites dos nossos principais partidos se apresentaram aos seus congressos.
Habituaram-se a pensar a reboque do unanimismo. Habituaram-se a cultivar a militância partidária vergados a lideranças que têm tendência para se ver ao espelho como incontestáveis. Habituaram-se a encaixotar nas urnas uma única candidatura ao posto supremo dos seus partidos.
Fora sempre assim com Jonas Savimbi, mas também com José Eduardo dos Santos. Não deveria ser assim com João Lourenço. Mas, prisioneira de anacrónica herança, a adulação que acompanha o trajecto dos novos líderes partidários é tanta e tão oportunista que, no activo, a maioria dos seus seguidores, recusando atribuir-lhes fraquezas, só vê neles virtudes.
É certo que, em matéria de candidaturas múltiplas, mal ou bem, a UNITA pôs fim a um velho tabu e impôs um corte radical com uma tradição histórica de raiz antidemocrática.
Mas, apesar de a UNITA ter protagonizado uma saudável ruptura com o passado, ainda é cedo para concluir que este partido já representa um projecto acabado de democracia.
Não, ainda não representa. Por lá, há, na verdade, ainda um longo caminho a percorrer para que a UNITA possa libertar-se completamente dos velhos fantasmas de Muangai e se possa impor na sociedade sem ressentimentos.
Em sentido oposto, repetindo o sumário dos congressos anteriores, receio que no congresso que o MPLA vai realizar na próxima semana não venhamos a estar novamente diante de uma tribo disposta a acoitar o prolongamento da velha acefalia leninista.
Por lá, continua a pairar no ar, à esquerda e à direita, o medo da própria sombra. Temo, por isso, que se venha a reproduzir a imagem descrita por Mia Couto no poema "Raízes do Orvalho".
Em defesa da dignidade democrática do próprio MPLA, seria bom que, no próximo congresso, os membros desta tribo não voltassem a apresentar-se de cócoras, como se "as sílabas (lhes) queimassem os lábios".
Não tenho, porém, a certeza de que isso venha a suceder. Porquê? Porque muitos deles vegetam por lá há muitos anos como exímios oportunistas de espírito e, nessa condição, depois de o terem idolatrado, todos se lembram como, em 2017, abandonaram o antigo comandante do navio tão logo se aperceberam que o "Costa Concordia" dos outros tempos se aprestava a ir ao fundo...
Atrelados agora a um novo comandante, a sua falsa fidelidade e o seu oportunismo de carteira continuam a falar mais alto do que a lealdade crítica e as convicções éticas e morais, mas nada garante que, amanhã, não venham a virar novamente o bico ao prego, despejando-lhe uma carrada de defeitos sem fim.
Cobertos por uma manta de cinismo, continuarão a discordar em privado de algumas decisões do líder, mas, para poderem assegurar os cargos, continuarão a ser os primeiros - lá dentro - a manterem-se calados e a aplaudi-lo em uníssono.
A maioria deles vai ao congresso aceitando fazer parte da caixa reprodutora de um contorcionismo político execrável. Para eles, mesmo quando está errado, o líder está sempre certo. Para eles, criticar o líder representa uma verdadeira heresia e chega mesmo a ser visto como uma patética forma de fornecer munições à oposição.
Com o tempo a ficar mais próximo do fim do que do princípio, muitos deles ainda não perceberam que, sem o respeito pela diferença expressa em voz alta e sem a alma do contraditório em cima da mesa, a emoção continuará a sobrepor-se à razão, o medo à racionalidade e o império da hipocrisia continuará a reinar.

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