Por outro lado, quando entra em cena uma organização que não reconhece a legitimidade do Estado, não é preciso invocar a História, nem ser adivinho, para saber que os problemas não se resolvem com escaladas de violência. Se há gente disposta a confrontar as autoridades legítimas de um país em nome de imaginárias entidades políticas, "protectorados" ou outras crenças, o Estado e os angolanos, em geral, sabem, por trágica experiência, que as "bazucas" policiais não são a solução.

Acontece que esse "Movimento" produz um discurso político que reinventou a História ao seu serviço, iludindo e mobilizando pessoas sem querer saber das consequências. As redes sociais amplificam as falsidades e, um dia, vemos "gente séria" repetir os mesmos argumentos. Será bom ajudar a desfazer a confusão.

Para quem se interesse pela história da África Central, não é novidade que os Lunda e os Cokwe, embora aparentados na origem, não falam a mesma língua, não tiveram o mesmo percurso histórico, nem o mesmo tipo de organização política. Foram até inimigos, quando os Cokwe se expandiram no século XIX, graças ao comércio do marfim, da cera e da borracha, para regiões outrora dominadas pelos Lunda. E nessa situação encontravam-se quando a partilha europeia de África impôs a todos novas fronteiras. A designação "Lunda-Cokwe" foi (mal) usada no período colonial para referir povos que, após o colapso do antigo Império Lunda e a ocupação belga e portuguesa, ficaram do lado angolano da fronteira. O facto de muita gente usar o termo "Lunda-Cokwe" não torna essa designação mais correcta. E falar de um "Estado Lunda-Cokwe" ou de um "Chefe dos Lunda-Cokwe" não tem legitimidade nas tradições Lunda nem nas tradições Cokwe, nem respaldo no passado histórico. Pode alimentar projectos políticos actuais (falsificações acontecem em todo o mundo...), mas é uma mistificação política moderna, não o retorno à herança ancestral.

Há ainda hoje, com ocasionais conflitos de linhagens, herdeiros reconhecidos das chefias tradicionais Lunda, cujo líder máximo está do lado congolês (em 1993, visitou oficialmente Angola o Muatiânvua de então). O mesmo pode dizer-se de chefias tradicionais Cokwe, mas estas nunca criaram um Estado único, apesar de importantes títulos como Mwata Cisenge (Quissengue nos textos portugueses) e Ndumba wa Tembo.

Sendo assim, nunca poderia ter havido um "Protectorado da Lunda-Cokwe" estabelecido entre Portugal e um determinado soberano Lunda. Aliás, basta ler o que aconteceu com Henrique de Carvalho em 1887 na capital (mussumba) do império Lunda já mergulhado em conflitos internos e crise económica. Na falta de um Mwant Yav (Muatiânvua) que tivesse sido ritualmente entronizado, o Major português assinou com pompa, em Janeiro de 1887, um "Tratado com a Corte do Muatiânvua" que introduzia a ideia (falsa) de que já há décadas os Lunda reconheciam a soberania portuguesa. Mas também estabelecia que o novo Muatiânvua, após assumir a chefia do Estado, poderia propor alterações antes de ratificar o Tratado. Em Fevereiro, a situação não mudara: o candidato considerado legítimo, Iamvo (Xa-Madiamba), recusava aproximar-se da capital ou receber os símbolos do poder sem a concordância de todos os dignitários da Corte e representantes das várias regiões, pelos riscos óbvios que correria. Neste mês, Carvalho "ratificou" o tratado com o soberano interino, Umbala, sabendo que ele não detinha verdadeiro poder. A 13 de Junho de 1887, o Major português, doente, abandonou a mussumba de regresso a Luanda sem um tratado subscrito por um legítimo soberano dos Lunda. Durante a sua longa viagem de ida e volta, Carvalho tinha também assinado acordos, uns "de comércio", outros "de protecção", com chefes Lunda e chefes Cokwe, acordos que ele publicou, não hesitando em chamar-lhes "de vassalagem" para defender os "direitos" de Portugal contra os interesses belgas (A Lunda ou os Estados do Muatiânvua, Lisboa 1890). São esses os famosos "tratados de protectorado", republicados pelo investigador português Eduardo dos Santos (A questão da Lunda (1885-1894), Lisboa 1966). Os livros de Henrique de Carvalho estão disponíveis on-line. Não há razão para investigadores desconhecerem que o Major não conseguiu trazer da viagem o tratado que ambicionava e que, além disso, o poder centralizado dos soberanos Lunda estava já desfeito.

Interessada no apoio diplomático e militar português, uma das facções Lunda ainda enviou uma embaixada a Luanda em 1888, mas o Governador-Geral, informado dos avanços dos Cokwe, não se mostrou impressionado e considerou-a "insignificante", pouco digna da grande fama dos antigos Muatiânvua.

Quanto a "protectorados", muitos juristas e historiadores já explicaram que os acordos que levaram esse nome, no quadro da expansão colonial europeia, não tiveram (com raríssimas excepções) homologação internacional, nem dos parlamentos e governos dos países europeus envolvidos. Eram na Europa uma fórmula para justificar pretensões coloniais sobre determinada região. Eram em África uma maneira de poupar campanhas de ocupação, convencendo chefes africanos dos benefícios da "protecção" e do comércio preferencial. Nas zonas do antigo império Lunda que a partilha europeia atribuiu a Portugal pouco serviram. A ocupação teve de fazer-se com operações militares de maior ou menor envergadura, que só terminaram na década de 1920. Para quem gosta de comparar com Cabinda, aqui a diferença é notória.

Os vários acordos feitos na região de Cabinda beneficiaram Portugal na Conferência de Berlim e, logo a seguir, os territórios respectivos foram incluídos no "Distrito do Congo Português" da colónia de Angola. Cabinda foi a primeira capital desse Distrito. No caso das Lundas, a partilha europeia do interior da África Central não respeitou os "acordos" com que Henrique de Carvalho tinha previsto um domínio português maior a leste do rio Kwango e para lá do rio Kasai. Estando já definida a fronteira entre Angola e o dito "Estado Independente do Congo" (dos Belgas), o próprio Henrique de Carvalho alertou o governo português para que desistisse de acordos com os Lunda, que já não mandavam a oeste do Kasai, e procurasse entender-se com os Cokwe, sobretudo o "grande Ndumba-a-Tembue". Mas no final foi a ocupação militar que prevaleceu.

Quando a administração colonial finalmente se impôs a toda a Angola, as leis discriminatórias do "indigenato" (1926-1961) atingiram a quase totalidade da população, de Cabinda ao Cunene, do Moxico a Luanda, sem qualquer consideração pelos ditos "protectorados". À luz da História, não tem sentido pretender que Portugal tivesse em conta, em 1975, aquilo que nunca teve valor nem efeitos jurídicos durante os 90 anos entre a Conferência de Berlim e a Independência de Angola.

Não é preciso inventar nada para esclarecer o processo histórico que integrou na colónia portuguesa de Angola os territórios a que hoje chamamos Lunda-Norte e Lunda-Sul e outros no leste angolano. O que os historiadores não devem fazer é pôr mais lenha na fogueira dos conflitos, alimentando ficções históricas, "validando" tratados que ou não existiram ou nunca foram válidos no plano jurídico ou institucional, nem tiveram qualquer efeito na administração dos povos colonizados. No caso em análise, tais ficções facilmente se desmentem recorrendo a documentos já publicados e a obras sérias, várias e em várias línguas, sobre os Lunda e os Cokwe. Como disse o grande historiador Hobsbawm: "A má história não é uma história inofensiva. É perigosa"

*Historiadora e professora de História de Angola (UAN)