Um dos temas que se vão levantando nestes lances iniciais da pré-campanha eleitoral prende-se com o uso abusivo dos meios públicos, sejam eles humanos, materiais e financeiros, para o benefício de actividades partidárias, na contramão da lei, do mínimo de bom senso, do ethos republicano e em ruptura absoluta com os mais elementares princípios do Estado Democrático e de Direito. Neste particular, o partido que nos governa há mais de 45 anos perdeu simplesmente a vergonha na cara e na sua estratégia de manutenção do poder, removeu simplesmente vocábulos como ética e legalidade e embarcou num vale-tudo em toda a linha e sem limites que tende apenas a desacreditá-lo ainda mais.

Alguns exemplos são suficientes para atestar o que acima afirmámos: inaugurações de bens públicos como se fossem obra partidária; deslocações do PR para assuntos de Estado desembocam em actos de massa de cariz puramente partidário, sendo para o efeito mobilizados meios do Estado em grande escala, em operações que têm o condão de apagar intencionalmente as fronteiras partidárias e do Estado, ambas se confundindo. Funcionários públicos e estudantes são coagidos a participar de tais actos mediante acções que configuram chantagem e em alguns casos ameaças veladas, ou nem tanto.

Por azar ou por sorte, muitos dos zelosos funcionários encarregados da mobilização acabam deixando pontas soltas que são provas irrefutáveis destes métodos macabros de mobilização de que se tem socorrido o Partido-Estado. No fundo, no fundo estas acções apenas vêm expor o quanto o MPLA foi penetrante na sua estratégia de partidarização das instituições, que contribui, sobremaneira, para a captura e desvirtuação do Estado Democrático e de Direito.

Noutra dimensão que caracteriza o uso ultra-abusivo dos bens públicos para se obter consideráveis vantagens eleitorais, o partido-Estado colocou os órgãos de comunicação social públicos ao seu serviço exclusivo. Esta operação anticonstitucional, ilegal e antidemocrática foi meticulosamente preparada e passou pela transferência de alguns órgãos privados para a esfera patrimonial do Estado, sob a capa de recuperação de activos. Com essa manobra, o Estado passou a deter o monopólio, mormente no segmento televisivo. Por si só, esse facto em nada comprometeria a liberdade de imprensa e de expressão, claramente consagradas na Constituição da República de Angola, pese embora a Lei de imprensa vigente ser frontalmente contrária à existência de monopólios na propriedade de órgãos de comunicação social. O problema é que os órgãos de comunicação sob tutela do Estado são reiteradamente objecto de manipulação, no sentido de vigorar a censura e a autocensura, erradicar o princípio do contraditório, banir o pluralismo e ferir de morte a norma constitucional e da Lei dos Partidos Políticos, que impõe o tratamento igual como regra estruturante na comunicação social. Quanto a isso, estão muito bem documentados estudos que assinalam marcante desproporção na distribuição do tempo de antena noticioso a favor do partido-Estado. Esse tratamento desigual é tão absurdo e tão aberrante que algumas figuras de proa da oposição foram, por conveniência, simples e vergonhosamente apagadas do nosso panorama mediático.

Os exemplos acima referidos sobre o uso abusivo dos meios públicos para fins partidários impedem que as forças políticas concorrentes o façam em pé de igualdade com o incumbente, viciando, a priori, todo o processo eleitoral. Uma das consequências evidentes é a dificuldade que os concorrentes que não convêm ao partido-Estado (por constituírem uma ameaça real à sua hegemonia e estratégia de manutenção do poder) têm de fazer chegar a sua mensagem e projectos de sociedade a todos os eleitores, pois os bloqueios impostos pelo uso abusivo dos bens públicos em regime de exclusividade criam verdadeiros halos anti-sépticos em determinados nódulos eleitorais. Estudos recentes sobre tendências eleitorais indicam, claramente, que as tendências conservadoras, isto é, favoráveis à manutenção do poder predominam em áreas rurais, onde, exactamente, as mídias alternativas como a internet, com as suas vibrantes redes sociais que escapam ao controlo do partido-Estado, têm alguma dificuldade em penetrar.

O despudorado e ilimitado recurso aos bens públicos para fins meramente partidários constitui um grosseiro atentado aos referentes do Estado Democrático e de Direito que qualquer força política que se vanglorie como sendo democrática não se deveria permitir. Ela é bem ilustrativa da face autoritária que caracteriza o partido-Estado e deve permitir elevar aos olhos dos angolanos o valor da Alternância como condição para se fazerem progressos tangíveis no processo de democratização do País. Só deste modo será possível remover obstáculos importantes na edificação do Estado Democrático e de Direito e eliminar bloqueios persistentes ao desenvolvimento do País, com o arejamento de ideias forjadoras de soluções eficazes e consentâneas com o espírito do tempo. Se procurarmos resolver os mesmos problemas que há séculos nos atormentam, como a pobreza e a miséria, recorrendo às mesmas soluções comprovadamente fracassadas, estaremos a adiar indefinidamente o progresso do País para patamares de desenvolvimento que rejeitam a pobreza humana e promovem a dignidade da pessoa humana, fazendo valer a justiça social.

Para que as eleições decorram em ambiente salutar e sejam efectivamente livres, justas e transparentes, é imperioso remover estas zonas cinzentas que ainda pairam no horizonte. Só assim se removem as suspeições que ainda recaem sobre o processo e se elevam os níveis de confiança no processo tanto dos concorrentes como dos eleitores, em geral. Precisamos de centrar o debate eleitoral em temas que sejam, de facto, estruturantes e sairmos desta zona marginal que em nada concorre para a harmonia, paz e concórdia tão necessárias para desprover o ambiente eleitoral de espículas que afastam a participação cidadã.

O tratamento igual pelos órgãos do Estado e pela comunicação social a todos os concorrentes enquanto princípio patente na Constituição e na lei é fundamental para estruturar um ambiente eleitoral que favoreça a sã concorrência e a liberdade de expressão, factores indispensáveis para garantir eleições livres e justas em cujos resultados todos nos poderemos rever. Para o bem de Angola!

*Médico, deputado à Assembleia Nacional pela UNITA