Diferendo que surgiu na sequência da decisão do Governo de pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva de três diplomas da Assembleia da República promulgados por Marcelo Rebelo de Sousa.

Os diplomas em causa propõem medidas de apoios sociais urgentes a diferentes grupos de portugueses particularmente afectados pelos efeitos da Covid.

Aprovados com os votos favoráveis de todos os partidos do hemiciclo, da esquerda à extrema-direita, excepto o partido socialista que suporta o Governo, os diplomas englobam medidas de apoio aos trabalhadores independentes e pais que estão em casa em teletrabalho com as crianças.

Tais diplomas, inconstitucionais para a generalidade dos constitucionalistas e avaliados como urgentes por economistas de vários quadrantes, aumentam as despesas do Estado, pondo em causa a execução do Orçamento de Estado.

Concordando com os apoios, António Costa, jurista de formação e um dos mais hábeis políticos da sua geração, recusou os diplomas, cortando "o mal pela raiz", pretendendo com isso que a atitude do Parlamento com respaldo do PR se torne moda.

Com a chamada do Tribunal Constitucional para arbitrar o diferendo, alvo de debates na esfera pública, Costa quer também impedir que a execução de qualquer orçamento do seu Governo minoritário possa ser obstaculizada pelo Parlamento.

E disse isso, com clareza, quando anunciou, solenemente, o envio dos diplomas ao Tribunal Constitucional para avaliar a sua constitucionalidade.

Para o primeiro-ministro, "o que está em causa é a defesa da Constituição e o modo como esta garante a estabilidade do orçamento e estabelece o equilíbrio de poderes entre o Governo e a Assembleia da República".

Numa mensagem enviada ao PR, antes da promulgação dos diplomas, o Governo sublinhava que "as normas aprovadas em coligações negativas são inconstitucionais e implicam um grave precedente de desvirtuamento do orçamento em vigor".

António Costa defende-se com a Constituição portuguesa, que defende que "os deputados (...) não podem apresentar projectos de lei (...) ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado".

Se Costa optou pela Lei, já Marcelo Rebelo de Sousa, professor de Direito Constitucional, preferiu promulgar os documentos, mesmo sabendo da sua inconstitucionalidade, em vez de, por exemplo, vetar ou enviar ao Tribunal Constitucional para a fiscalização preventiva.

Poucos dias antes da promulgação das leis, o Chefe de Estado português fez saber, através do semanário Expresso, que estava dividido entre o constitucionalista e o político. Optou por este último.

O PR, oriundo do PSD de centro-direita, escolhe, assim, estar do lado dos apoios sociais, do socorro às pessoas, o mais popular desta equação.

Disse que, muitas vezes, quando promulga leis, o faz para as salvar, reconhecendo que, no actual contexto pandémico, as medidas que promulgou são "boas leis" e, por isso, quis salvá-las. Para tal, deixou o exímio constitucionalista na gaveta.

Enquanto Marcelo Rebelo de Sousa dizia que "o direito serve a política e não é a Política que serve o direito", António Costa aparece como um legalista ao sublinhar que "Lei é Lei e a Constituição é a Lei Suprema, que é nosso dever cumprir e fazer cumprir, sejam as medidas populares ou impopulares, estejamos ou não em ano eleitoral, seja ou não o Governo maioritário".

Na opinião do primeiro-ministro, ex-aluno do professor de Direito Constitucional Marcelo Rebelo de Sousa, e actual líder do PS, da família da Social-Democracia europeia, "a Constituição é sempre a Constituição".

Ultrapassada que está a sua reeleição, não tendo conseguido alcançar os 70% da reeleição, em 1991, de Mário Soares, Marcelo Rebelo de Sousa, um presidente muito popular, sabe certamente que o que fizer neste segundo mandato determinará a sua maior ou menor popularidade quando deixar Belém.

Sabe também que até 2023, altura em que termina a actual legislatura, vai ser chamado muitas vezes como fiel da balança entre Governo e Oposição parlamentar.

Com a sua magistratura de influência, até ao final da legislatura, estará nas mãos de Rebelo de Sousa evitar a precipitação de uma crise política que interrompa abruptamente a legislatura, num momento de crise Covid.

Marcelo Rebelo de Sousa enviou recados para os dois lados da barricada. Ao Parlamento avisou que desta vez promulga, mas para próxima não contem com ele como arma de arremesso contra o Executivo.

Ao Governo lembrou que, como minoritário, tem a obrigação de negociar com a Assembleia da República, em nome da estabilidade governativa e do País.

Numa atitude aparentemente ambígua, lembra que "só ao Governo é constitucionalmente permitido aumentar a despesa ou diminuir a receita" e "que a Assembleia da República não desfigura o Orçamento que ela própria aprovou".

Na mensagem, antevê a possibilidade de "o Governo poder suscitar a fiscalização sucessiva da constitucionalidade dos diplomas promulgados" e lembra que lhe cabe "sensibilizar" o Governo para o "diálogo com as oposições e tornando evidente às oposições que ninguém ganharia com o afrontamento sistemático".

A tudo isto, o primeiro-ministro, antigo aluno de Rebelo de Sousa, chamou de "algo bastante inovador" na ciência jurídica.

Todos os sinais apontam no sentido de o Tribunal Constitucional dar razão ao Governo, averbando Costa uma vitória e aparecendo aos olhos da opinião pública como o legalista.

Vitória insuficiente para apagar a imagem de insensível social que se lhe colou à pele por ter recusado os três diplomas em causa.

Num país onde autarcas condenados por corrupção no exercício das suas funções são tidos como modelos e reeleitos nos cargos, depois de cumprirem penas de prisão, é fácil perceber que, para a opinião pública, apoios sociais, mesmo que à margem da lei, são mais populares que o cumprimento da legalidade.

O PR reforça o seu papel de equilibrador, o único capaz de estabelecer a ponte entre o Governo e oposição até 2023, consciente que está de que a precipitação de eleições antecipadas com a queda do Governo não resolveria a crise política e muito provavelmente criasse imbróglios políticos. Seria acrescentar crise à crise.

No actual xadrez político, se, por um lado, não se vislumbra uma maioria de direita em Portugal, por outro o partido socialista, desavindo que está dos partidos à sua esquerda, sobretudo do Bloco de Esquerda, dificilmente chegará a uma maioria que lhe permita governar sem coligação ou acordos de incidência parlamentar com a esquerda mais à esquerda.

Neste cenário, dias depois, Marcelo veio a publico explicar que decidiu promulgar os três diplomas para permitir à oposição lançar a abertura ao difícil diálogo do próximo Orçamento de Estado, neste ano muito agitado politicamente com a realização, no Outono, das eleições autárquicas.

O Presidente português precisa de evitar que o diálogo entre os partidos do sistema descarrile e que essa situação ajude os extremistas a crescerem e florescerem de tal forma que se tornem no centro da política.

Rebelo de Sousa, um católico da direita moderada, certamente não quer deixar como herança do seu consulado a implantação da extrema-direita como força central e incontornável da política em Portugal.

Para tal, o Presidente dos afectos fez o que a sua sensibilidade social e faro político aconselhou, como fez em outras vezes encontrando forma de salvar "boas" leis.

O homem, que jurou cumprir e fazer cumprir a Constituição, acabou por revelar que promulgou orçamentos de duvidosa constitucionalidade em nome de um bem maior, a estabilidade do país e ao apoio aos mais necessitados.

Dando uma no cravo e outra na ferradura, Rebelo de Sousa sabia que estava a criar um diferendo com António Costa ao mesmo tempo e se coloca como o aproximador entre as posições do Governo e das oposições no futuro imediato que se apresenta como de difícil negociação.

Costa e Marcelo, condenados a cooperarem institucionalmente, afastam publicamente qualquer cenário de crise, afirmando que este diferendo significa a Democracia a funcionar.