Estamos a celebrar 19 anos de paz e de reconciliação nacional. Qual é a sua avaliação?

Olho para este processo com muita preocupação, pois a ideia que tenho é de que estamos diante de uma paz dos vencedores, porque as próprias circunstâncias que sustentaram a ideia de paz foram trágicas. O Dr. Jonas Malheiro Savimbi tinha de ser eliminado para o alcance da paz. Portanto, o sangue de um filho de Angola para que a paz viesse (apenas o calar das armas). Mas, a paz efectiva é uma construção que tem muitas componentes, e, nestes 19 anos, devia-se colocar o "acento tónico" no segundo elemento: o da reconciliação. É ali onde coloco as minhas maiores preocupações, uma vez que não consigo ver uma reconciliação como gostaria que fosse, embora haja alguma faixada. As instituições estão ali, há o Parlamento, aparentemente há a chamada democracia pluripartidária, todavia temos um País sob a vontade hegemónica de um partido que, desde 1975, tem assumido as rédeas.

O gesto do Presidente João Lourenço, relativamente ao famoso almoço que organizou, veio acrescentar as minhas preocupações, na medida em que, quando eu ouvi pelas redes sociais de uma suposta lista de convidados, sem o líder da oposição, que representaria a outra parte, daquele que são os signatários da paz do Luena, julguei que aquilo fosse fake news. Contudo, depois de ter sido consumado o acto, comecei a ficar mais bem preocupado, visto que entendi que está a levar-se este processo para onde não há adversários políticos, mas inimigos que ontem se bateram militarmente noutro campo e que continuam sempre inimigos. Quando são inimigos, os limites éticos desaparecem, é o que aconteceu. Vi um Presidente que se decidiu a convidar várias figuras com alguma confusão. Ouço falar de nacionalistas e do 4 Abril, supostamente o Dia da Paz e da Reconciliação Nacional. Era uma questão de ver quem foram os protagonistas deste processo, quer no tetro da guerra, quer no "teatro" negocial. Logo, nos dois processos deviam ser identificados os protagonistas neste almoço. Levantou-se uma confusão à volta do presidente da UNITA, por não ser um histórico e que não sei onde foram buscar esta ideia tão patética e idiota que a mim surpreende. Tudo somado, o Presidente da República foi muito infeliz em deixar vazar este sentimento de inimizade para com o presidente da UNITA, que é o maior da oposição. João Lourenço não saiu muito bem na fotografia. Não sei se o Presidente tem conselheiros. Esta equipa toda que anda ali no Palácio não sei o que faz. Ou ele não se deixa aconselhar, ou os conselheiros têm medo de aconselhar.

Na senda desta abordagem de paz, como descreve a actual situação que se vive em Cabinda?

Fiquei perplexo ao trazer o acto central para cá, por ser uma data que nada tem a ver com Cabinda. Ela tem a ver com o espaço que vai do Zaire ao Cunene, e não de Cabinda ao Cunene. Para já, a guerra civil ocorreu neste espaço. Em Cabinda houve um outro conflito político e militar e que continua até agora, em que há forças militares ainda activas, algo sabido por várias figuras castrenses. Recentemente, o general Francisco Furtado, antigo Chefe do Estado-Maior General das FAA, disse que Cabinda continua a ser um pequeno detalhe que precisa de solução, pois houve uma parte que não abraçou o Memorando de Entendimento do Namibe (a FLEC) e que continua activa a reivindicar por meios violentos. Isso significa que não podemos misturar a situação de Cabinda com aquilo que aconteceu no resto de Angola. Cabinda ainda é um assunto que deve ser resolvido. Lembro-me de um alto oficial das FAA que me tinha confidenciado o seguinte: "Nós, Forças Armadas, cumprimos o nosso papel em Cabinda; os políticos agora devem cumprir a sua parte". Significa que o exército, depois da assinatura dos Acordos do Luena, em 2002, em Setembro do mesmo ano, começou a operação que chamaram de "Cobra" e "Vassoura", que foi uma invasão no interior do Maiombe, com tropas transportadas do Sul de Angola para Cabinda. Enquanto a guerra terminou no espaço do Zaire ao Cunene, em Cabinda começava uma grande guerra, na floresta do Maiombe. Essa ofensiva das FAA conseguiu desarticular a FLEC, tendo feito o assalto às áreas consideradas libertadas, onde funcionava o antigo Estado-Maior da FLEC, a partir daí ficaram as chamadas bolsas de guerrilhas que faziam acções isoladas.

O senhor traz esta abordagem para manifestar o descontentamento, pelo facto de o acto central do Dia da Paz ter sido levado para Cabinda?

Sim, pois Cabinda nada tem a ver com esta data, a menos que seja uma provocação para com o seu povo. Estou em Cabinda e não me revejo no 4 de Abril. Embora o Governo angolano tenha também feito um memorando, o Fórum Cabindês, liderado pelo compatriota António Bento Bembe, cuja assinatura foi a 1 de Agosto de 2006, sendo que a partir daquela data passou a ser considerado pelos signatários como o Dia da Paz para Cabinda, teve várias edições, mas, após a sexta, nunca mais se celebrou. Havia uma data de paz para Cabinda e outra para Angola.

Se os militares já fizeram a sua parte, como se diz, como pensa que os políticos poderão resolver este diferendo?

O problema de Cabinda não será resolvido com a força das armas, ou seja, militarmente. O problema de Cabinda passa por um diálogo aberto e honesto, sem manipulações e, sobretudo, que possa contar com os verdadeiros protagonistas que estão no terreno. Sei que, para além disso, deve haver determinada audácia dos políticos angolanos. Estou a falar do Presidente João Lourenço, em criar esta oportunidade durante o seu mandato. O Presidente José Eduardo dos Santos teve várias negociações com a FLEC que acabaram por redundar em corrupção, suborno, falta de inclusão e foram os mesmos que estiveram à frente do Memorando de Entendimento do Namibe.

(Leia este artigo na íntegra na edição semanal do Novo Jornal, nas bancas, ou através de assinatura digital, disponível aqui https://leitor.novavaga.co.ao e pagável no Multicaixa)