Até aí, tudo bem. Cada um é livre de fazer as escolhas que bem entende e, inclusive, de se implicar em eleições nos países estrangeiros porque pensa que os seus interesses de grupo estão ligados a esse desiderato. Essa camaradagem, que passou da ideologia para o puro interesse, já vem de longe.
Samora Machel viajou várias vezes para Luanda e Agostinho Neto retribuiu com visitas a Maputo. José Eduardo dos Santos e Joaquim Chissano não foram grandes amigos, mas mantiveram-se os laços de "camaradagem" e cumplicidade, pelo menos em alguns aspectos.
JES não apreciava muito a autonomia de iniciativa de Joaquim Chissano quando este (como Mandela) procurava, por sua conta e risco, ouvir a outra parte do conflito armado angolano sem passar por ele, sem o seu agrément prévio.
A chegada de Armando Guebuza ao poder trouxe relações com JES mais quentes, mais fraternas, mais cúmplices, talvez porque ambos tivessem uma narrativa semelhante sobre as suas escandalosas riquezas pessoais: igualmente onírica; um dizia-se rico porque tinha criado patos e o outro porque a sua filha tinha vendido ovos.
Por isso, João Lourenço ir a Maputo apresentar-se aos seus "camaradas da Frelimo" e com eles concertar estratégias, tácticas, acções ou o que for, para se apoiarem mutuamente, está perfeitamente no sentido das coisas. O que não é legítimo (e até é ilegal) é ir na condição de Ministro da Defesa, a custa do erário público, para uma actividade privada.
O que não está no sentido da história - e creio que ninguém esperava - é que o indivíduo fosse lá dizer: "A nossa força está na nossa unidade! Se nós não formos unidos, os malandros vão-nos vencer. Porque os malandros são unidos. Quer os de dentro, quer os de fora, eles são unidos. São unidos e não dormem, andam todos os dias a pensar na forma como derrubar a Frelimo, como derrubar o MPLA" (sic).
Este discurso desbragado talvez se deva ao seu sentimento de impunidade permanente. Talvez tenha pensado que falando lá fora, no interior dos muros da sede da Frelimo, em Maputo, aqui não se iria saber? Mas o mundo é global e estamos na era da comunicação. Tudo se sabe e rápido, provocando um efeito de bola de neve nas redes sociais, onde se entende que JL define a sua cruzada política como a luta contra os "malandros", "quer os de dentro, quer os de fora", para a preservação do castelo de poder.
Mas, afinal, o que é ser malandro? O dicionário que consultei regista "malandro" como sinónimo de "vadio, preguiçoso, velhaco, patife, mandrião, gatuno, desavergonhado, biltre" (sic). A nova comunicação acrescentaria à citação desta entrada do dicionário: "risos"!
Se "malandros" quer dizer "gatunos", "desavergonhados", entre outros sinónimos, este tiro de JL é uma bala de ricochete. A quem melhor serve esta carapuça? É claro que "malandros", na boca de JL, não são os "patriotas" da "acumulação primitiva", mas todos angolanos (e moçambicanos) que não fazem parte do grupo hegemónico de poder; são as pessoas que nas oposições políticas, nos movimentos cívicos, nos sindicatos, nas igrejas ou em outras instituições não se mostram dóceis às derivas do poder, à rapina do país, à repressão, à perseguição e à exclusão dos cidadãos do espaço público, das políticas (mais acções que políticas) do partido no poder.
"Malandro" aqui é o denominador comum entre "bandido" e "fantoche", que eram as duas expressões utilizadas pelos regimes autoritários de um país e de outro para estigmatizar os seus adversários (inimigos) políticos.
Esta expressão é uma forma de desqualificar as oposições e todas as pessoas que não gravitam à volta do seu poder. Todas as ditaduras tratam as oposições desta maneira.
(Pode ler este artigo de opinião na íntegra na edição 477 do Novo Jornal, também disponível por assinatura digital, que pode pagar no Multicaixa)