Qualquer indivíduo atento apaga o televisor, fecha o jornal e desliga o rádio e o televisor, e o internauta prefere fazer ainda melhor: olha para o lado e sai assobiando, assim que se apercebe que alguém se apressa a passar-lhe um certificado de inaptidão perante mais um descaso de informação tornado público e provavelmente acabe ainda pior do que veio, tal qual um boato. Por não se lhe reconhecer nenhuma veracidade nos argumentos de razão, morre solteiro ante o altar por ser um boato, e principalmente porque hoje o acesso à informação, devido à dinâmica do fenómeno comunicativo, tem outra elasticidade interpretativa e passou a estar à distância de um simples clique.

Ora, não faz muito sentido, recorrentemente, andarmos a brincar aos golpes de Estado. Pelo menos é o que parece a historieta dos 37 ex-militares que a 14.ª Sessão do Tribunal de Luanda deverá levar a julgamento nos próximos dias. Num caso que dá a impressão de que as autoridades competentes continuam a ver o país como uma "pequena bolha" à volta da qual não existem seres pensantes, de tal sorte que basta vir a público passar uma informação e esperar pelos resultados pretendidos, sem que o receptor possa filtrá-la antes.

Nunca é demais afirmar que é de má memória qualquer historieta posta a circular que sugira uma alegada tentativa de golpe de Estado, se ela, logo à partida, não for um facto concreto na sua forma frustrada ou nos primeiros sinais de marcha. Está ainda muito presente na vida de muitos angolanos o impacto e/ou os efeitos que teve o "27 de Maio de 1977", que as autoridades se recusam sequer a trazê-lo a debate. E provavelmente essa tentativa de colagem a golpes de Estado tenha precisamente essa intenção, a de deixar as pessoas sob aviso permanente para estarem caladas diante dos descasos da vida política.

Em pouco mais de dez anos, tivemos três situações claras em que o argumento da tentativa de golpe de Estado em Angola foi trazido a público, e apenas em uma das quais o país ficou em suspenso: a que envolveu o antigo responsável da secreta angolana, mas nem por isso o país mordeu o anzol. Em outras ocasiões, quando foi do caso 15+duas, por exemplo, o país reagiu com desprezo a toda trama forjada, uma vez que ninguém está alheio a todo o esquema de segurança, não só à volta do chefe de Estado, mas do próprio poder de fogo e do emaranhado de forças militares e paramilitares existentes à volta dele. Logo, vir a público anunciar uma tentativa de tomada de assalto do palácio presidencial é no mínimo burlesco, soa a gozo da inteligência colectiva do país.

À excepção da situação de 2007, quando foi arrolado o antigo responsável da secreta, o mesmo assunto veio a revelar-se como uma autêntica ridicularização da própria acusação levantada em 2015, quando 17 jovens foram acusados de apoiarem uma suposta conspiração internacional que visava destituir o chefe de Estado, através de manifestações de rua, queima de pneus, barricadas, etc., etc., tendo sido apresentado como prova um "livro" de onde aprenderiam práticas violentas de contestação do poder instituído, quando na verdade o livro, subversivo na opinião hilariante de um responsável angolano, professa precisamente um outro credo: o da luta pacífica contra formas ditatoriais de governação, aliás, como faz jus o próprio título da obra: da "Ditadura à Democracia".

Todas essas historietas que as autoridades angolanas têm trazido a público denotam um sentimento esquizofrénico em relação aos golpes de Estado, e por mais que a intenção velada seja atemorizar, desencorajar ou simplesmente deixar o aviso de que estão "atentos", não deixa de ser intrigante ver a secreta angolana exposta permanentemente ao ridículo, como de resto foi o caso dos 17 activistas, em que até pen drives, fascículos e vídeos captados discretamente nas sessões de debate, sem a autorização de um juiz, foram levados a tribunal, e com direito à leitura integral de um inédito da autoria de um dos co-réus!

Ahistória envolvendo os 37 alegados golpistas, posta a circular na semana passada pelas autoridades, lembra-nos uma outra tentativa, igualmente caricata, de fazer crer que houve do outro lado da barricada do Monte Sumi, no município da Caála, no Huambo, um confronto bélico entre os fiéis religiosos e efectivos das forças armadas durante três horas de fogo intenso, no famigerado caso Kalupeteka. Como prova, as altas patentes do Ministério do Interior apontaram a existência de três armas do tipo AKM47 recuperadas pelos fiéis que teriam dado lugar a três horas de intenso combate. É ridículo!

De golpe em golpes, vamos construindo uma realidade que parece estar sedenta da destituição dos órgãos democraticamente eleitos. Publicidade gratuita para um facto de má memória para os angolanos. Há largos meses, estamos recordados, um responsável da UNITA veio a público denunciar que estavam a ser recrutados ex-militares com a pretensa tentativa de os associar a uma tentativa de golpe de Estado que estava a ser protagonizada pela secreta angolana. Sobre tão grave acusação, as autoridades não se pronunciaram, mas agora alegam que o caso dos 37 golpistas foi mantido em sigilo para não alarmar a sociedade.

Definitivamente não faz nenhum sentido descer tão baixo. O país deve, e a secreta angolana também, estar acima de qualquer suspeita. Não é recomendável nem tampouco higiénico, por exemplo, ter uma secreta associada a cenas de assassinatos como foi o caso de Cassule e Kamulingue. Não faz nenhum sentido continuar a trazer a público o fantasma dos golpes de Estado, quando crimes económicos são amnistiados com recurso à lei e à legalidade. Não faz nenhum sentido expor ao ridículo as instituições do Estado, e pior ainda: não faz nenhum sentido que vivamos sob a forma fictícia de constantes golpes de Estado para mandar recados a quem quer que seja!