Há anos que temos a perfeita noção de que alguns círculos do poder o exercem como se estivessem a governar a sua própria casa, utilizando os poderes públicos para resolver a sua vida particular.

Para, aproveitando o acaso histórico e político de estarem em posições de decisão, que não vão como é óbvio durar eternamente, não têm pejo nenhum em instrumentalizar as funções que exercem para resolver a sua vidinha e a dos seus. Como se Angola não pertencesse ao seu Povo e as funções políticas, ou quaisquer outras, não devessem ser o cumprimento das promessas que vão fazendo ao longo dos anos. Por trás de ares vetustos de quem tem o peso do mundo às costas, vão brincando com as nossas vidas, gozando com os graves problemas que o País vive. Troçam de nós, de todos nós, enquanto a retórica vai pregando o inverso do que fazem. E do que deixam fazer. Todos os inícios de legislaturas são marcados pelo espectáculo indecoroso, desavergonhado e insultuoso para todos nós, da escolha de viaturas para os deputados da Assembleia Nacional, dois terços dos quais, como bem sabemos, entram mudos e saem calados, limitando-se a levantar o braço quando a isso são mandados. Ainda para mais, desprovida como está de qualquer papel real, concreto e palpável que qualquer parlamento de um País democrático (ou, como é o nosso caso, em construção e consolidação democrática) deve exercer.

Com uma taxa de desemprego assustadora, a miséria a grassar pelo País fora, a esmagadora maioria das famílias sem poderem fazer frente a despesas básicas que lhes garantam um nível de vida medianamente decente, eis que num filme já velho e relho estão preocupados com as viaturas de luxo, sem as quais as senhoras e os senhores deputados naturalmente não podem viver nem subsistir.

É ridículo este repetir de exemplos que nos transportam para uma realidade que não a nossa. Ridículo e trágico. É verdade que nos ajuda a confrontar-nos com o que é, na verdade, uma grande percentagem da nossa classe política. Seja do poder, seja da maioria dos integrantes da oposição.

A quase totalidade dos políticos profissionais do nosso País deixa cair com facilidade a máscara das preocupações com a nossa situação e de uma pretensa seriedade na resolução dos problemas com que nos debatemos, quando se trata de resguardar e se possível alargar o seu já gigantesco leque de privilégios. Tornam-se naquilo que são: sem ponta de seriedade, sem um pingo de consciência patriótica, sem o mínimo assomo de alguma consciência que possibilite um processo de auto-análise. E, já agora, de correcção dos enormes erros e disparates que foram cometidos ao longo destes anos, dos quais resultaram estes anos complicados que enfrentamos.

A conversa da baixa do preço do petróleo já não convence ninguém. Só os mais incautos e os que, directa ou indirectamente, disso beneficiam. A aquisição cíclica de viaturas de topo de gama para os deputados do Parlamento da República de Angola, quase sempre em contraciclo e sem nenhuma justificação plausível que não seja a habituação a que nos obrigaram de assistir a constantes exemplos de como viver no luxo no meio da miséria, é de novo um dos exemplos mais flagrantes da profunda contradição entre o que esta gente diz e depois faz.

É certo e sabido que alguém vai sair a ganhar com mais esta negociata.

E é certo e sabido que vamos, mais uma vez, encolher os ombros, abanar a cabeça e esquecer este escândalo com duas ave-marias e três padres-nossos.

Pobre País que tais filhos tem e mantém, como se todos lhes pertencêssemos em nome de algum direito divino.