A boçalidade com que são tratados os funcionários com salários em atraso há meses (e alguns há anos) é prova de que a melhor defesa para quem não tem mais nenhum "coelho" (obrigada, Joaquim Lunda pela lucidez) para tirar da cartola é a resposta hostil. Os médicos manifestam-se pela morte de um colega numa esquadra, por não ter usado máscara. A Ordem que se tornou militante desmarcou-se, e o Ministério da Saúde ficou mudo. Um silêncio absoluto instala-se quando a notícia mostra que a corrupção pode existir nos corredores do Palácio, mas ninguém investiga. Os exemplos de desnorte crescem na proporção inversa em que as luzes da ribalta da esperança de uma nova Angola se extinguem.

Um monólogo desprovido de verdade, em que sistematicamente dão o dito pelo não dito, nunca assumindo as derrotas nem os erros, mas buscando equivalências vazias de sentido para não assumirem que a convivência democrática é um sapo na garganta que custa a engolir. A crença míope de que o povo tem medo é um erro crasso. Olhem para a história dos outros países. Em todas as latitudes, ficou provado que a paciência dos povos, por mais elástica que seja, jamais é eterna. O povo já não reconhece a ardósia na qual se está a escrever o resultado da governação. O "Covid" inviabilizou as autárquicas, mas as filas dos autocarros insuficientes não são preocupantes. O povo heróico, generoso e "farto" (grata Sérgio Piçarra pela imagem) começou a exigir, com igual azedume, os direitos que são seus, mas que nunca lhes foram dados. Mas faz algum sentido existir um ginásio milionário na Assembleia Nacional e não haver água nas escolas? Voltar a inscrever a biblioteca milionária do Palácio no OGE quando a hemodiálise sobrevive aos soluços? Tem alguma lógica a resposta do ministro que manda os jovens do Catambor ou do Sambila para a lavra, porque conheceu um caso de sucesso, mas tem nenhum estudo sobre o assunto? Ou a outra saída ministerial que apela à mandioca para o matabicho? Há alguma razão que torne o discurso do Executivo irracional, quando a Comissão Multissectorial diz que as condições de biossegurança estão acauteladas nas escolas e nos hospitais, mas agora o MED vem dizer que os pais têm de comprar todos os materiais de biossegurança necessários para a escola, quando nos tinham dito que iam desviar a verba da merenda escolar (o que já era indecente) para o mesmo efeito? As outras doenças fora Covid foram acantonadas numa sala de espera, à espera. A sobreposição de poderes em que um ministro diz que não e o outro diz que sim, mais os superministros de Estado que na retaguarda são responsáveis por grande parte do caos e das intrigas, mas não assumem, só cortam fitas. Afinal, mudámos o calendário escolar porque há muitos angolanos que querem estudar na Europa, foi a justificação? São corajosos. O povo está desempregado, mas, como as estatísticas voltaram a ser maquiadas lá nos corredores da intimidação institucional, se calhar a informação que chega ao Chefe do Executivo, tal como a estrada, não está correcta. O Sindicato dos Médicos denuncia, todos os dias, a precariedade das condições em que os profissionais de saúde trabalham em plena pandemia. Com centenas de prédios devolutos, o Executivo já gastou 45 milhões USD (fora o preço da obra que desconhecemos) para construir uma nova sede da CNE. Faz algum sentido morrerem de fome 46 crianças por dia, fechar 300 centros de nutrição infantil, mas a prioridade é uma auto-estrada de 1400 quilómetros, quando não conseguimos, sequer, tomar conta da via expresso ou da Nova Marginal, que não têm, sequer, iluminação pública ou gastarmos mais de 10 milhões de dólares em assessores para entendermos o petróleo? Para não falar nas exonerações que nem aquecem a cadeira, nas novas portagens esburacadas e no aumento do preço do combustível, um pesadelo que já é uma real ameaça. Hoje são 300, amanhã serão 1000 e um dia serão milhões. Quando se reprime a capacidade de dialogar, constrói-se uma reacção hostil. Quem discorda é exonerado, rotulado de antipatriota, inimigo da paz, perturbador da ordem pública. Quem pensa diferente vê a sua vida privada em sites que tentam destruir a imagem dessas pessoas. Fomos novamente invadidos por falsos pastores, juristas alinhados, jornalistas domesticados, políticos sem ética, que nos dizem, todos os dias, que o Estado não se discute, cumpre-se. E surgem as mesas oblíquas em programas televisivos acorrentados à ideologia, estéreis em isenção com um discurso que se esquece de quem tem menos e de quem é a culpa. Surgiram velhos académicos que perderam a vergonha e que vendem a falsa realidade, desafiando todas as leis da física e o próprio Espírito Santo, provando que o País está a "cair para cima" e que isto comprova a indesmentível capacidade da liderança e da visão estratégica desta governação.

O povo não é o inimigo. O inimigo é a fome, a pobreza, a dívida, a falta de uma educação de qualidade e de uma saúde que nos salve, a falta de visão política que faça nascer inovação. Somos poucos para a dimensão do País, não obstante a elevadíssima taxa de fecundidade e de natalidade. A escola que era um dever revolucionário será paga pelas famílias no ensino secundário, um retrocesso que aumentará o abandono escolar, que já era épico neste nível de ensino e cuja oferta nacional não chega a 40%. A Pátria merece filhos melhores. Estamos a perder a oportunidade de ser um futuro que faça sentido. 45 anos depois, continuamos a matar os exemplos de dignidade para deixar aos nossos filhos, sendo que esta é, na verdade, a única herança que vale a pena deixar, pois, sem a qual, as Nações falham sem dó nem piedade.