Em Kiev, mesmo que a pressão sobre o Presidente Volodymyr Zelensky para criar condições que permitam vislumbrar uma saída para este conflito, cujo número de mortos e feridos já é quase impossível determinar com o mínimo de rigor, cresça a olhos vistos, as suas posições publicas sobre esse assunto e a legislação que fez aprovar no Parlamento a impedir negociações com o Presidente russo, Vladimir Putin, tornam impossível qualquer aproximação a um entendimento formal.
Mas a anormal intensidade da tempestade de neve e gelo que nos últimos dias se abateu sobre a vasta linha da frente, pode ser o alçapão por onde introduzir umas tréguas informais que permita aos dois lados não só atenuar o drama escrito por morte e sofrimento como também limpar o sangue da cara que impede vislumbrar uma solução.
O sinal de que já ninguém quer, entre os aliados dos ucranianos no ocidente, a começar pelos Estados Unidos, ver esta guerra prolongar-se por muito mais tempo, está na forma como os media norte-americanos e europeus tiraram o foco das trincheiras e o colocaram, quando abordam o tema da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, nas dificuldades dos países da NATO em manter o fluxo de dinheiro e armas que permite a Kiev manter o esforço de guerra com Moscovo.
E, como alertam alguns analistas, quando se percebe alguma vontade de ambos os lados para tomar outros caminhos que permitam acabar com a carnificina, mas existem condicionalismos legais ou políticos que impeçam essa opção, um "cisne negro", ou um acontecimento inesperado, pode ser o lubrificante que faltava.
E isso pode ser o mau tempo, como há décadas não sucedia naquela região do leste europeu, que não só impede as tropas de se movimentarem nas trincheiras como limita a eficácia da artilharia, dificulta o uso das aeronaves, helicópteros e aviões de guerra, e até os drones não aguentam as rajadas de vento, a queda de neve e gelo e as temperaturas de 20 e 30 graus negativos.
É que quando arrefece o ímpeto da guerra, a paz fica sempre mais perto, porque nenhuma lagarta de carro de combate, por mais moderno que seja, consegue movimentar-se no lamaçal que a meteorologia prevê que se vai seguir ao frio intenso, com a igualmente intensa e prolongada chuva que se espera para os próximos dois a três meses naquela geografia.
Disponibilidade para conversar
Em Moscovo, depois de, logo nos primeiros dias de guerra, que começou a 24 de fevereiro de 2022, se foi ouvindo a disponibilidade para negociar com Kiev, porque os territórios conquistados, aparentemente, seriam prémio suficiente para o Kremlin.
E também para Kiev, aparentemente, naquelas primeiras semanas, negociar seria a melhor opção, o que ficou demonstrado pelas rondas negociais que existiram e o documento onde estava plasmado um acordo de paz chegou mesmo a ser rubricado...
Mas foi rasgado e atirado para o lixo por Volodymyr Zeleensky quando o intempestivo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, irrompeu pelo Palácio Presidencial em Kiev e "obrigou", com o beneplácito dos EUA, Zelensky a travar as conversas com o Kremlin, continuar a guerra, "até à derrota total dos russos", comprometendo a NATO a fornecer armas e dinheiro de forma ilimitada para que isso fosse possível.
Centenas de milhares de mortos e feridos depois, e quase dois anos passados desde a invasão russa, nem a Ucrânia está a ganhar a guerra, nem os países da NATO, especialmente os EUA, parecem querer ou poder manter para 2024 o apoio que se viu em 2022 e no início de 2023, seja por razões políticas ou económicas ou por mudança de governos, como sucedeu na Eslováquia, ocorreu no Congresso dos Estados Unidos e acaba de acontecer nos Países Baixos e na Polónia.
E, internamente, em Kiev, amontoam-se os problemas para o regime, porque não só o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas ucranianas, Valerii Zaluzhny, está cada vez nitidamente em contramão com a posição de Zelensky, aludindo mesmo a uma situação de "impasse" na frente de guerra, como são cada vez mais evidentes os problemas no circulo do poder polítrico e militar e até na incapacidade de recrutar para as fileiras do Exército.
Depois de há algumas semanas, naquele que foi o mais evidente sinal de que algo vai mal em Kiev, o ajudante de campo de Valery Zaluzhny, o major Gennadiy Chastyakov, ter sido morto, no seu dia de aniversário, com uma granada disfarçada de presente, agora - soube-se na terça-feira - foi a mulher do chefe da intelligentsia ucraniana, Kyrylo Budanov, Marianna Budanova, ter sido envenenada com um composto complexo de metais pesados, estando a ser tratada num hospital sob cuidados intensos.
Embora seja muito difícil descortinar a verdade no meio de uma outra intensa e devastadora tempestade de contra-informação gerada nos dois lados das trincheiras, é já claro em Kiev que Zelensky e Zaluzhny não pensam da mesma forma sobre a condução da guerra e isso leva os analistas, mesmo ocidentais, a admitirem que ou o Presidente afasta o CEMGFA e os seus generais mais leais, ou o CEMGFA acaba por tomar o poder de forma a mudar a condução política e diplomática desta guerra.
Até porque, segundo a imprensa internacional, Kiev não está a conseguir cativar os jovens para se alistarem para a guerra, com uma fuga em massa para longe dos recrutadores, muitos deles mesmo para o exterior do país.
Para alterar este estado das coisas, o Governo de Zelensky contratou empresas privadas para proceder ao recrutamento de jovens, e menos jovens, para as Forças Armadas, demonstrando claramente dificuldades neste campo, o que se pode traduzir por uma afastamento dos cidadãos da causa da guerra, especialmente quando, com o passar do tempo, apesar da propaganda, a morte e o sofrimento já estão em todas as famílias, em todas as casas da Ucrânia.
E esse ambiente pesado de esmorecimento da impetuosidade nacionalista na Ucrânia ficou ainda mais em evidência com a falhada contra-ofensiva de Verão (ver links em baixo nesta página), com a qual Zelensky prometia derrotar sem piedade os ocupantes russos, mas que se revelou um fracasso, apesar do envio de milhares de carros de combate ocidentais, misseis e artilharia modernos em grandes quantidades... que o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, chegou mesmo a dizer que "foi entregue à Ucrânia tudo o que Kiev pediu aos seus aliados para derrotar a Rússia".
Também do lado russo, onde, com igual intensidade, as mortes chagam a casa das famílias, mesmo que o universo de recrutamento seja muito superior, provocando crescente mal-estar, e no terreno, as forças do Kremlin sentem as mesmas dificuldades devido não mau tempo.
No entanto, a diferença é que Vladimir Putin tem repetido a disponibilidade para negociar, embora exija para o efeito a cedência de Kiev dos territórios que anexou, as quatrio províncias conquistadas em 2022, de Donetsk e Lugansk, no Donbass, e Kherson e Zaporizhia, no sul, além da Crimeia, desde 2014.
E essa condição é igualmente rejeitada de forma liminar por Zelensky, que insiste na ideia de que só haverá paz no dia em que o último soldado russo deixar todo os territórios da Ucrânia reconhecidos pela comunidade internacional, que são os que existiam aquando da independência da antiga URSS, em 1991.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.